quarta-feira, 25 de junho de 2008

Bivalves

Um texto meu na 4ª edição do Jogo das 12 Palavras ali no Eremitério

Em nome do pai, do filho e do espírito santo.
O incenso faz dois braços que se cruzam, no ar pesado de água sobre a cova coberta de cal.
O padre encomenda um corpo. É final da manhã e não há sol. O céu descai, sobre a sepultura, um cinzento pesado.
A dois passos dali, na ria, andam os homens a vasculhar na demanda do isco. Os pés descalços pisam o lodo com método. Além mais abaixo, o lingueirão assoma num emergir em rosácea. Uma, duas, muitas formas arredondadas como se fossem vitrais alumiando nave.
O funeral fez-se sem sobressalto o caixão levado por quatro pessoas. A amante chorosa e enlutada num branco coberto por um impermeável negro que mal lhe tapa a anca estreita. O filho que fez em duas horas os trezentos quilómetros, mal leu o telegrama: Morreu. Pai. Enterro. Amanhã. Dez. - a mãe, quando enviara, poupara os abraços e a palavra horas, cuidado que se percebia por ser uma loucura o preço de cada palavra. Nas outras pegas, seguravam dois conhecidos da apanha do bivalve. Os amigos, que eram a bem dizer, o Ilídio e o Timóteo, souberam do ocorrido depois de uma semana. Ninguém mais para que se pudesse dizer: olha, está passando um cortejo fúnebre.
A mulher, preferiu ficar sentada num cotovelo da mesa da cozinha limpando de raízes umas cebolas que semeara no quintalzito dos rés de chão em que moram. Lembra o que dizia o falecido:
- Quando morrer não quero que chores. Enquanto me enterram, fica em casa ou dá um passeio pela serra ou faz qualquer coisa que te distraia, mas não vás ao cemitério. A mim, basta-me o coveiro.
Há um ano e meio ele deixou a ria e o bote. Uma distracção daquilo que fazia no escritório. Preguiçou-se.
Há coisa de uns meses, despediu-se e deu em sair pela noite.
Dizia-lhe:
- Venho cedo, não te preocupes. Dorme.
Mas veio sempre cada vez mais tarde e ela sem pregar olho.
Uma tarde, disse-lhe:
- Hoje não durmo que agora tenho uma amante.
Assim, sem rodeios, como quem diz: hoje apanhei um balde, queres ver?
Ela vinha-lhe percebendo um olhar perdido da realidade. Há largo tempo.
- Consulta o Dr. Raimundo, Fernando.
Mas ele que nada, que não estava doente; manias tuas, respondia.
Por isso, ela nem se adornou de ciúmes. Esperou uma fiada longa de muitas noites em que ele não veio, e não se espantou quando o filho da Elvira do segundo esquerdo veio correndo dizer-lhe:
- O vizinho Artur (e arfava, o moço) encontrou o seu marido (e ela, adivinhando, só não sabia o como) enforcado na ria, ao pé do bote.

8 comentários:

Mena G disse...

Se soubesse exactamente qual foi o desafio, comentava de outra forma.
mas, lendo pelo postado no eremita chego à conclusão que :
cal
corpo
vasculhar
lodo
método
emergir
rosácea
sobressalto
cotovelo
raízes
água( ria),

foram as palavras que usaste.
Penso que a que falta mencionar(loucura),está implícitano marido suicidado.
Mas, provavelmente a culpa foi do Dr. Raimundo...
:)

(Onde posso ler o desafio?)

wind disse...

Escritora, bela prosa, mais uma vez.
Tocas realidades e consegues "meter-nos" no sítio delas:)
Beijos

dona tela disse...

Vou mudando o paradigma.
Beijos.

Heduardo Kiesse disse...

Formidável prosa! Gosto meu! Obrigado pelo prazer! 12P

beijo em ti

CNS disse...

Sugas-nos. Para dentro das tuas palavras. Muito bom.

Um beijo

Anónimo disse...

Mais um texto lindo, envolvente e misterioso...

Mateso disse...

Mais um belo texto. Parabéns!
bj.

Makejeite disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

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ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein