segunda-feira, 5 de maio de 2008

mãezinha

Nestes dias, a gente fica sem mesmo nada para dizer.
Duas linhas de letras.
Um tacho a fumegar no lume.
E uma sensação esquisita de algo entre o que foi e o que julgámos ser.


Apodreciam laranjas no quintal caídas da única laranjeira que se abria em copa larga mesmo ao centro dum terreiro vermelho: em fumos de pó quando batia o vento de sul, ou empapado da chuva caída pelo meio da tarde.
Cheirava a doce em dias de florir a árvore, ou sempre, que é essa a ideia que eu tenho.
Cheirava um cheiro mole que entrava no quarto em que me acordava de algum pesadelo: seriam simples sonhos, mas é de pesadelos que me lembro.
Havia os dias em que ela me adormecia no cheiro a sopa que trazia embrulhado no avental junto aos restos da linha guardada num dos bolsos: a linha com que passajara a camisa que daria à preta lavadeira (não dava nada roto, cosia e engomava antes)
Naquele dia, não me lembro de sentir o cheiro doce da flor e nem sei se haveriam frutos pisados sob a copa da árvore
Muito antes de aparecer aquele mar de vizinhos, eu fiquei com ela nos meus braços: quieta, muito sossegada como se estivesse à espera. E eu segurando-a como se num abraço.
Um cão ladrou num tom agudo. Lembro-me porque me aborreceu que fizesse barulho.
Ela respirava devagar na dobra do meu cotovelo e pedacinhos de quente ficavam salpicados no meu braço.
Terei dito, baixinho:
- Mãezinha, vamos fazer o lanche?
Ela respirou um pouco mais fundo, assim como a suspirar.
Desvestida. Sem mais sobre o corpo que os calções e o avental caído do pescoço. Que deus me perdoe, mas ela parecia um bicho danado no meio da cozinha. O leite derramado cozia no carvão meio apagado e eu sem saber o como, nem o para onde, e menos ainda o porquê de estar ela ali quando eu entrei anunciando:
- Mãezinha…saíram fracções, daquelas, no ponto; eram fáceis.
Eu acertara tudo, teria boa nota.
Foi isso que eu disse, ou outra coisa?
Ela não me ouviu. Virava tachos, uns dentro dos outros, sentada no lajeado do chão. O leite queimava nas poucas brasas. Fedia a cozinha.
Não sei se era carvão que ardia, se era outro o fogo. Fedia o cabelo que ela tinha molhado e em desalinho, quando lhe disse:
- Mãezinha, venha vestir-se.
Naquela tarde a chuva empapara a terra. Apanhara-a na rua e ela fugira na lama. Disse ela depois, e disse que caíra, se sujara. E disse assim:
- Resfriei-me, entonteci e quando a Maria chegou estava aquecendo leite para me meter na cama.
E eu calada, ouvindo-a que falava uma e outra vez com os que me levaram depois de meu pai chegar.
- Anda, Maria, hoje jantas comigo.
Ela quase nua sentada no chão como se brincasse. Ria num riso desusado. Lembro-me muito bem do riso e daquele seu olhar. E do como ela me disse, assim como se acordasse de um dos meus pesadelos:
- Maria, ajuda-me.
Segurou a minha mão e levantou-se andando como se nunca o soubesse: cada um dos pés torcia-se sobre o outro.

Talvez não tenha sido assim. Não foi, decerto. Como teria eu força para levantar do chão aquela mãe tão grande?
Os vizinhos chegaram antes que eu ficasse com ela sentada no chão da cozinha. Os vizinhos a desviarem-me dela, a dizerem-me:
- Maria, deixa descansar a mãezinha.
Os vizinhos a quem ela disse:
- Eu ía tomar um banho quente e despi-me, mas lembrei-me do leite que estava ao fogo.
Uns dias depois de eu ter entrado na cozinha como sempre fazia no regresso da escola, preparada para contar que afinal não fora chamada a Português:
-Sabes quem foi, mãezinha, a Piedade. Esticou-se.
Não cheguei a dizer? Ou disse?
Nem sei se era essa a história que iria contar. Sei que tinha tido prova com fracções. Isso julgo ter a certeza, mas também não sei se eram fracções ou outra coisa.
E ela a empilhar os tachos uns sobre os outros,uns dentro dos outros. Ela a falar com eles. E eu sem perceber. E eu com aquele aperto na barriga e uma vontade enorme de a esconder.
- Mãezinha, venha para o seu quarto.
E ela gritando agarrada a mim:
- Mariaaaaaaaaaa
Isso foi antes ou depois de terem chegado todos?
Nunca mais me adormeci no avental a cheirar a sopa?
Se ela aqui estivesse, perguntava-lhe.
Podia ser que ela se lembrasse se eu a embalei nos braços ou se tive tanto medo que gritei:
- Socorro.
E fugi para a rua, e vieram todos.

Um dos meus poucos sonhos ou mais um pesadelo.
Não me lembro bem.

10 comentários:

mac disse...

"Mãezinha".

E é aí que está toda a verdade, o resto são sonhos ou pesadelos, nem interessa nada - coisas diversas, sem relevância.

wind disse...

Escritora, emocionaste-me com esta prosa.
Beijos

Gi disse...

não sei que te dizer

eu lembro tudo.

Este mexe com a memória "da gente"

demasiado doloroso


um beijo

Gi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Continuas a escrever tão bem, amiga, tão bem... Beijo!

CNS disse...

Deixou-me um nó. Não sei se na garganta. Talvez no coração. Tu sugas que tem lê. Para dentro do que escreves.

um beijo

Alberto Oliveira disse...

A realidade é assim: sem floreados e com o coração ao pé da boca. Também a conheço desse modo.

Abraço.

Eremit@ disse...

Já me vou habituando à tua escrita, mas fiquei sem ar.
Tão forte. Tão belo e real na dor descrita pela narradora que nos atinge, entranha-se na pele e penetra na alma. A mim foi isso que fez. e deixou-me assim, sem fôlego...
...mas vim deixar-te um convite e um alerta. Tens um desafio lá no Eremitério.O de fazeres um "meme" - está lá o link que a gentil Raquel também enviou - e com 6 palavrinhas só fazeres uma nota biográfica ou de memórias tuas. Podes fazer com imagem ou reforçar com outras técnicas. Passa então por lá, por favor.
Desculpa so avisar hoje mas ontem foi impossível. Fui vadiar pela natureza, mas esta trocou-me as voltas e não vim pernoitar a casa como contava.
Fraterno abraço

Anónimo disse...

lágrimas
na garganta.
no peito.

mjm

Gi disse...

Tens o prémio Honor 2008 para receber e um meme para dares sequência se assim o entenderes.

Um beijinho ó desaparecida

(a pequena árvore também é para ti)

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein