Não tinha capa nem outro agasalho.
Um lenço. Isso. Trazia na cabeça um lenço de lã dobrado em bico.
Sobrava-lhe o pano sobre o rosto. Achegava-lhe aos olhos de repuxado que o fazia adiante. Um lenço de cor parda. Um castanho russo. Teria, em outros tempos, sido um lenço numa linda cor de chocolate. Cobria-lhe o cabelo todo. Nem vislumbre deste e nem do rosto. Com jeito, viam-se-lhe os lábios rosados e carnudos. Raramente, num sorriso, divisava-se uma carreira de dentes brancos, falhado, de uma queda, um da frente.
Tarde de Inverno. Chegavam-se os dias uns aos outros, curtos como os passos que ela salpicava na rua que levava de casa de Beatriz, a casa do Frederico, e desde, lá mais para baixo, à sua. Caminho que fazia três dias na semana, sempre no início e no fim da tarde, sempre pela ordem de ser ele o último visitado. E sempre rezando dois Padre-Nosso e uma Salve-Rainha na laje amaciada pela dobra da saia debruada a veludo, em frente do altar de Santa Teresinha. Sempre essas orações, na Igreja Matriz alumiada pela ténue luz das velas, no largo que cortava em dois o caminho de uma a outra casa.
Não trazia capa nem outro agasalho.
Nem trazia nada que a dissesse caminheira. Que a mostrasse em viagem seguindo a linha de flores que ponteia a berma do caminho.
O Sol desfazendo-se em escarlates para além do povoado, para além dos montes de onde, em outros tempos, vinham gentes sem mais vestir que um fato puído e roto, ou muito remendado, sabe-se lá de que dono cada bocado. Nem a ponta de uma camisa sobrando por debaixo. Pele e osso e sarro. Se traziam, eram botas rotas, desatadas ou presas com cordões desirmanados. As mais das vezes, era como vinham: descalços. Nas mãos, o quase nada de um alforge mirrado de estar esquecido de ser ele um local para guardados. Gentes de fora do lugar onde ela vivia desde que fora nascida, lá mais para os lados da azinhaga, onde seu pai tivera um próspero negócio de colchões. Seu pai vestira a palha com riscados que faziam camas de senhores e enxergões de pobres. Não dos muito, muito pobres, dos remediados. Vestira também lãs, mas mais raro, e morrera cedo, de cirrose. Nunca teve mãe. Não a sabe.
Maria Ema, como a baptizaram, não trazia mais do que um lenço a amparar o frio, o vento, a chuva miúda que caía.
Acresceu na reza dessa tarde, a dezena de um terço. Dez compassadas Ave Maria Cheia de Graça por alma da Margarida.
Doente que ela estava desde o Pentecostes.
- Só caldos muito aguados e água.
- Muita água e chá.
Assim dissera o médico, assinando um remédio desenganado.
Chás de ervas variadas, lhe dera a mãe, dia após dia. Beatriz era nisso entendida. De nada lhe valera, pobrezinha. Sumira-se pouco a pouco. De repente, não mais a Margarida: a que virava ninhos e entornava os tinteiros da escola e galdeirava em cata de amoras, e tomava banho nua na ribeira. Mal entrara o Outono, dera em esbrasear em febres que nenhum cataplasma atenuava. Na semana passada, um suspiro rouco, mais assim um grito desistido, e Margarida partia para um outro mundo. Nem tinha idade de ser morta, se para tal houvesse idade. A cabeça muito loira descaída sobre um ombro, e as mãos, cuidando que ainda rezavam, muito unidas até se despegarem, de uma a outra, sem vida.
Nevara.
Não tinha abafo que não fosse o lenço de lã que quase lhe cobria o rosto.
Nesse fim de tarde de Novembro, esfriado, ela desagasalhava.
As pedras do caminho escureciam. Ficavam sombreadas antes que se apagasse o azul que era a porta da casa. Uma porta apenas e um postigo largo. Nem janelas.
Maria Ema subiu, um e outro, cada degrau que eram dois, e desprendeu o trinco. Foi entrando sem dizer com sua licença, nem chamar por nome. Foi-se chegando, as mãos abrindo a sombra num tontear de cego, antes que os olhos se lhe afizessem e desdobrassem o todo em unidades.
Um espelho esfacelado na metade, reflectindo-lhe o lenço; uma saliência na parede, espantalhando uma palmatória pingada de cera e um galo azulado a dizer de humidades; uma caixa de folha coberta de chita e, por cima, torto na parede, um quadro de uma Santa com Menino. Sobre uma mesa de camilha, um jarro e uma bacia, ambos em barro com rosas vermelhas desenhadas.
E, sem precisar de desfazer a sombra, Maria Ema via a cama de ferro, demasiado grande para o espaço exíguo, e Frederico sentado na cadeira de palha, os lábios afogados na boca desdentada. Os lábios que ele traz à tona num sorriso.
Quebra-se a sombra em luz.
Descai nos ombros o lenço que já foi da cor do chocolate.
Caem duas tranças muito negras.
Tranças ponteadas de branco. Tranças quase todas prateadas.
E os olhos, dependurados nele que veio de lá detrás dos montes.
Olhos azuis, como era o céu numa longínqua tarde envolvente e morna.
Tarde de Primavera repetida no pino de muitos Invernos.
Não tinha capa, nem lenço, nem tinha pano outro que a vestisse.
texto publicado no "2º JOGO DAS 12 PALAVRAS" - Eremitério
Um lenço. Isso. Trazia na cabeça um lenço de lã dobrado em bico.
Sobrava-lhe o pano sobre o rosto. Achegava-lhe aos olhos de repuxado que o fazia adiante. Um lenço de cor parda. Um castanho russo. Teria, em outros tempos, sido um lenço numa linda cor de chocolate. Cobria-lhe o cabelo todo. Nem vislumbre deste e nem do rosto. Com jeito, viam-se-lhe os lábios rosados e carnudos. Raramente, num sorriso, divisava-se uma carreira de dentes brancos, falhado, de uma queda, um da frente.
Tarde de Inverno. Chegavam-se os dias uns aos outros, curtos como os passos que ela salpicava na rua que levava de casa de Beatriz, a casa do Frederico, e desde, lá mais para baixo, à sua. Caminho que fazia três dias na semana, sempre no início e no fim da tarde, sempre pela ordem de ser ele o último visitado. E sempre rezando dois Padre-Nosso e uma Salve-Rainha na laje amaciada pela dobra da saia debruada a veludo, em frente do altar de Santa Teresinha. Sempre essas orações, na Igreja Matriz alumiada pela ténue luz das velas, no largo que cortava em dois o caminho de uma a outra casa.
Não trazia capa nem outro agasalho.
Nem trazia nada que a dissesse caminheira. Que a mostrasse em viagem seguindo a linha de flores que ponteia a berma do caminho.
O Sol desfazendo-se em escarlates para além do povoado, para além dos montes de onde, em outros tempos, vinham gentes sem mais vestir que um fato puído e roto, ou muito remendado, sabe-se lá de que dono cada bocado. Nem a ponta de uma camisa sobrando por debaixo. Pele e osso e sarro. Se traziam, eram botas rotas, desatadas ou presas com cordões desirmanados. As mais das vezes, era como vinham: descalços. Nas mãos, o quase nada de um alforge mirrado de estar esquecido de ser ele um local para guardados. Gentes de fora do lugar onde ela vivia desde que fora nascida, lá mais para os lados da azinhaga, onde seu pai tivera um próspero negócio de colchões. Seu pai vestira a palha com riscados que faziam camas de senhores e enxergões de pobres. Não dos muito, muito pobres, dos remediados. Vestira também lãs, mas mais raro, e morrera cedo, de cirrose. Nunca teve mãe. Não a sabe.
Maria Ema, como a baptizaram, não trazia mais do que um lenço a amparar o frio, o vento, a chuva miúda que caía.
Acresceu na reza dessa tarde, a dezena de um terço. Dez compassadas Ave Maria Cheia de Graça por alma da Margarida.
Doente que ela estava desde o Pentecostes.
- Só caldos muito aguados e água.
- Muita água e chá.
Assim dissera o médico, assinando um remédio desenganado.
Chás de ervas variadas, lhe dera a mãe, dia após dia. Beatriz era nisso entendida. De nada lhe valera, pobrezinha. Sumira-se pouco a pouco. De repente, não mais a Margarida: a que virava ninhos e entornava os tinteiros da escola e galdeirava em cata de amoras, e tomava banho nua na ribeira. Mal entrara o Outono, dera em esbrasear em febres que nenhum cataplasma atenuava. Na semana passada, um suspiro rouco, mais assim um grito desistido, e Margarida partia para um outro mundo. Nem tinha idade de ser morta, se para tal houvesse idade. A cabeça muito loira descaída sobre um ombro, e as mãos, cuidando que ainda rezavam, muito unidas até se despegarem, de uma a outra, sem vida.
Nevara.
Não tinha abafo que não fosse o lenço de lã que quase lhe cobria o rosto.
Nesse fim de tarde de Novembro, esfriado, ela desagasalhava.
As pedras do caminho escureciam. Ficavam sombreadas antes que se apagasse o azul que era a porta da casa. Uma porta apenas e um postigo largo. Nem janelas.
Maria Ema subiu, um e outro, cada degrau que eram dois, e desprendeu o trinco. Foi entrando sem dizer com sua licença, nem chamar por nome. Foi-se chegando, as mãos abrindo a sombra num tontear de cego, antes que os olhos se lhe afizessem e desdobrassem o todo em unidades.
Um espelho esfacelado na metade, reflectindo-lhe o lenço; uma saliência na parede, espantalhando uma palmatória pingada de cera e um galo azulado a dizer de humidades; uma caixa de folha coberta de chita e, por cima, torto na parede, um quadro de uma Santa com Menino. Sobre uma mesa de camilha, um jarro e uma bacia, ambos em barro com rosas vermelhas desenhadas.
E, sem precisar de desfazer a sombra, Maria Ema via a cama de ferro, demasiado grande para o espaço exíguo, e Frederico sentado na cadeira de palha, os lábios afogados na boca desdentada. Os lábios que ele traz à tona num sorriso.
Quebra-se a sombra em luz.
Descai nos ombros o lenço que já foi da cor do chocolate.
Caem duas tranças muito negras.
Tranças ponteadas de branco. Tranças quase todas prateadas.
E os olhos, dependurados nele que veio de lá detrás dos montes.
Olhos azuis, como era o céu numa longínqua tarde envolvente e morna.
Tarde de Primavera repetida no pino de muitos Invernos.
Não tinha capa, nem lenço, nem tinha pano outro que a vestisse.
texto publicado no "2º JOGO DAS 12 PALAVRAS" - Eremitério
9 comentários:
A tua escrita grita nos olhos, a luz, os cantos com sombra. Os detalhes que afinal nos lembramos. As memórias que se despertam com a leitura de uma palavra. E engole-nos.
um beijo
"Não tinha capa, nem lenço, nem tinha pano outro que a vestisse"
os olhos azuis foram o seu agasalho, o seu aconchego ...
Que saudades que tinha de vir aqui . Um beijo grande princesa do sul , também esta leitura é umpouco a minha mantinha de lã. O meu aconchego .
noite feliz
Pois.
A Morte é inevitável e omnipotente - haja consolo na cara com que a encaramos e orgulho no trapo que vestimos.
Hélas!
Bom, isto vai ser repetitivo...
Gostei imenso, talentosa amiga!
Desculpa se, de todo o texto, fixei "o galo azulado a dizer humidade"...
Tinha "armazenado" na memória tal artefacto!
:)
Fabuloso!
Eu tinha um amigo, tinha porque o Jorge, meu "irmão" do coração já se foi, o estúpido não pensou que poderia fazer mais falta que a que pensava. Mas ele dizia que há textos que por mais que queiramos esquecer, nunca nos saem da memória. Relatava muitas vezes que um dia tinha ido a Espanha e como não tinha nada para ler à noite e ficava em casa de um amigo sem televisão no quarto teve que comprar um livro, um qualquer porque era só para ter a certeza que tinha, mas para seu espanto o livro que comprou era super interessante, uma colectânea de artigos. Ficou enamorado pelo estilo e nunca mais deixou de ler artigos. O mesmo me apetece dizer de ti, que raio, escreves invulgarmente bem e foi bom saber que este blog é fruto duma pessoa daquelas que eu apesar de parecer afastado, aéreo, gosto. parabéns!!!
Perfeito!!
Raras e inesperadas belezas que a vida sempre tem para nos dar!
Escritora a tua capacidade de me colocar no sítio das personagens é genial! Parabéns:)
A tua descrição é formidável!
Beijos
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