-Na minha vida, Maria, não resta mais que o antes
E olhava-me longamente como navio que desliza em direcção ao mar
E olhava-me com um olhar de longe
-Só ficou este fio de eu contar
-Ou(des)existo
-Esqueço
E desfiava entre os dedos as contas de um rosário
Um fio de redondos
Um passar de uma conta a outra sem rezas, sem orações
-A minha ligação aos deuses ou me perco eu deles
Era como ele o explicava
E desenhava coloridos num horizonte de antes
Recontava
-Sempre ao cair da tarde
-Sempre uns instantes antes de sombrear a noite sobre a casa
-Paredes de pedra
-Morna, ora por fora, ora por dentro, consoante fosse Verão ou Inverno
-A casa de portas encarnadas com a buganvília entornando recortados em cada janela
-Duas e mais duas e a janela do canto
E calava-se
Retirava o olhar de lá tão longe para olhar-me
Meigo olhar
Como se fora pomba a arrulhar depois do milho, do miolo de pão
Terno e muito azul
Um lago derramado sobre a minha ingratidão
Que era isso, o eu ouvi-lo entre um estar remendando um vestido ou fazendo a sopa
Sempre eu escutando-o num intervalo e ele naquele querer levar-me
-Onde estaria se me não estivesse eu aqui, Maria?
E era uma pergunta cheia de pontos de exclamação
Tantos que eu me ofuscava deles e arredava o meu olhar daquele azul
Ficava-me olhando o avental dobrado no meu colo
(Des) preciso
E ele já se fora de dali
Já se alongava em mais outros longes
-Nesses fins de tarde, eu olhava a janela do canto, bem no alto da casa grande
-Trazia um punhado de malmequeres do campo, duas ou três papoilas, se era o tempo, ou um pedaço de papel pardo com letras grandes para que ela visse de lá do canto superior esquerdo que era onde ficava a janela do seu quarto
-Amo-te é o que tinha escrito, seguido do seu nome
-Já passaram muitos Invernos, Maria
-Que não mais houve estações de permeio desde aquele Verão
-Sabe, Maria?
-Nunca mais ela na janela ao fim da tarde
-Invernos de muita neve
-Pendurada na buganvília
-Escorrida da madeira esfarelada de vermelho em cada janela
-Um verão sem ela a correr pelo carreiro com o vestido de folhos sombreado do chapéu de abas com fitas de cetim esvoaçando como caudas de pássaro
-Um estio sem janelas abertas
-Um calor sufocante e a janela do canto superior esquerdo sem os reflexos das vidraças Tapadas cada uma por madeirames encarnados
-Um Verão que se derramou sobre um Inverno e outro e mais muitos outros
-Sem de permeio Outonos
-Sem Primaveras
-Invernos desfazendo Verões da minha espera
Assim, como ele se contava
E desfiava a sua ligação aos deuses
Contas sem rezas numa vida sem mais que o antes
Sem Primaveras nem Outonos e nem Verões
7 comentários:
Escritora, sempre a repetir-me, mais uma excelente prosa, cheia de belas descrições de sentimentos e lugares.
Gosto muito da tua maneira de escrever, quase Mia Couto:)
Beijos
... do texto, quase desnecessário se torna tecer-lhe os elogios merecidos.
Das estações (exceptuando a do combóio do Rossio, mai-lo Túnel e da do Metro da Praça do Comércio, em que à cautela não viajarei tão depressa por óbvios motivos) gosto de todas: do Inverno, da Primavera, do Verão, do Outono e da dos Correios de Almada, onde todas as semanas vou pôr uma carta apaixonadíssima para a minha Adozinda que anda a trabalhar na Alemanha para arranjar dinheiro para a casinha dela e do seu Deodato que já nasceu cansado.
Com um sorriso, despeço-me,
Deodato Faria*
*Niente.
Todas as estações cabem no espaço tempo que esboças com a tua escrita...
um bj
Uma Páscoa santa e feliz!
E muitas guloseimas que inventem muitos outros doces momentos..
E assim se desfiam dias como quem desfia anos!
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Uma Páscoa Muito Feliz
Feliz e Santa Pascoa sao o meu desejo para esta grande escritora.
Beijos
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