domingo, 30 de março de 2008

Jerónimo

-Carece de pedir desculpa, não. Do que foi ontem nem sobrou ideia.
Jerónimo dobrou a cabeça de carapinha branca num cumprimento, cordial, terno:
-Bom dia, Senhora Menina!
Chamava-a desse jeito. Assim, desde que ela lhe mostrou um anel no dedo:
-Vou casar, Jerónimo.
A partir daí.
Nunca se ajeitou com o Senhora e ajuntou-o ao Menina de que sempre a tratara.
Menina.
Como a chamou desde que a viu pela primeira vez, mais ela parecia um dos cabritinhos que nasciam, quase sempre pela madrugada: vermelhos e assustados. Deitavam-na em cama que era tal qual a cesta que a mãe levava com galinhas ao mercado de Quinta.
Hoje ela dissera:
- Desculpa, Jerónimo.
E ele falara daquele jeito de desfazer nós. Daquele jeito de esconder raivas junto com lágrimas e carinhos:
-Carece, não, Senhora Menina. Carece, não.
Crescera demasiado perto daquele cabelo muito loiro e muito liso. Cheirara os perfumes dos banhos tomados depois das correrias pela lama vermelha: a mão dela muito pequenina buscando a sua num deslize de pedra, numa subida.
Jerónimo crescera caminhando-lhe ao lado.
Assistiu-a no alvoroço que foi ela virar mulher. Jerónimo cuidava morrer de medos que nem sabia designar. O medo e ele. Sempre. Acocorado por detrás de uma parede, sentado numa escada, passeando para cá e para lá, uma rua inteira na bicicleta. De dia ou, mais tarde, pela noite. E ela subia escadas, assomava entre portas, sorria-lhe de de detrás da janela mal subida de um carro. Carros vermelhos, verdes. Muitos carros em tom de verde com homens que traziam doirados sobre cada um dos ombros.
Hoje ela pediu-lhe:
-Desculpa, Jerónimo.
E ele desfiou memórias de ontens ao finzinho das tardes. Ficou olhando o passado na transparência da saia que ela veste. Vermelha. Cingida na anca. Rodada. A tocar a chinela preta enfiada nos dedos. Gingada a saia sob a mangueira. Sorrindo à Florinda que entrança o cabelo da filha. Gingam saia e ela.
Ela que disse:
-Desculpa, Jerónimo.
Que coisa mais sem jeito.
Foi uma festa como as que havia na casa grande. Festejavam-lhe os oitenta anos.
Jerónimo guardara-lhe lugar. Descuidou de a sentar à sua direita que assim dizia sua mãe “é o lugar de honra”.
Sentou-a bem defronte: que se alagasse a mesa no verde dos seus olhos, nos seus oitenta anos.
Toda a noite, defronte foi um lugar faltoso.
Um passado grande sentado na cadeira bem na sua frente.
E hoje ela dizendo:
-Desculpa, Jerónimo.

Do que foi ontem nem sobrou ideia.
Jerónimo sabe. Só ficou ideia do que passou muito antes de ontem.
Jerónimo sorri.
A saia dela sumindo na descida do morro.
Ficou o transparente balançando na bordinha que tem o mar a escorregar lá muito ao fundo.

11 comentários:

CNS disse...

Sentem-se as cores dos cheiros. Sente-se a brisa quente, refrescada pela sombra da mangueira. E a luz, que nos fica nos olhos.

bjs

Mateso disse...

O morro vermelho, escondendo a baía na descida. O ar, sinto-o de o ter sentido tantas vezes.
É África "Minha"
Obrigada.
Beijo

éf disse...

gosto destes quadros de palavras. parecem-me fotos. como alguns outros que conheço desmontam a falácia do "uma fotografia vale por mil palavras!". Depende de quem fotografa e de quem escreve!

;)

Eremit@ disse...

tanta ternura e beleza aqui neste belíssimo conto. Fraterno abraço

Eremit@ disse...

tanta ternura e beleza aqui neste belíssimo conto. Fraterno abraço

Licínia Quitério disse...

Excepcional. É tudo.

Gi disse...

és exímia a descrever momentos de ternura. daqui vejo os olhos e o sorriso do jerónimo para a sua eternamente menina.

gostei, como sempre.

um beijo

wind disse...

Escritora que "belezura" de conto:)
Beijos

Alberto Oliveira disse...

... só não entendo (ou finjo que não me apetece entender?) porque te dizes cansada das palavras, tal como li mais abaixo, lendo pedaços de prosa como este.

Quem ama a palavra (a escrita) dificilmente se sente cansado com ela. Digo eu, que me dá gosto dizer coisas e esperar retorno das coisas que digo.

Alberto Oliveira disse...

... "cansada das palavras" é uma frase que erradamente te atribuí quando ela afinal é escrita por uma tua comentadora.Ainda sou dos que lêem os comments... que são parte integrante deste "diálogo virtual" e daí a minha confusão, porque também também "te sentes cansadas de os ouvir... ".
Bom, quem já se sente cansado de dar voltas a esta cena sou eu...

Alberto Oliveira disse...

... e "cansada de estar calada... ".
Pois olha: eu calo-me para não dizer mais nada...

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein