Lembra-se pouco.
Quer dizer: não faz o exercício de recordar, nem, de espontâneo, lhe surge aquele nublar-se o entender, aquele aperceber-se de idos: como se fora ele em uma nuvem, correndo de arco em rotação, a voz da mãe gritando cada vez mais longe, Joãooooo. Isso, ou a sombra dele partindo para longe numa tarde de chuva e ela dizendo-lhe um adeus vermelho que era a cor do lenço atando-lhe os cabelos. Ou água deslizando numa tarde de Agosto. Água demorada numa tarde grande.
Não. Não lhe é dado o toldar-se a página do caderno de assentos. Os deves e os haveres da aldeia: uma quarta de banha vermelha, decilitro e meio de azeite, acabados de apontar com a ponta romba do lápis de tinta que lhe deixa, ao fim do dia, uma marca azulada ao canto da boca. Desde o Natal passado, da Gertrudes Inácia, um parzito de peúgas “pró mé nete qué cá pague despois d’arreceber”. E, ao Ti Manuel da Eira, o rol crescia repetido e parco, cada dia, apenas um quarto de pão de centeio e “umas poucachinhas de azeitonas!”. Todos os dias. Há um ror de anos.
Não. Os assentos em letra borrada de cada revirar de página com a mão untada dos nacos de “toicinho” ou de um pingar do azeite, não se nublavam de saudades.
Varrera-se-lhe a memória da essência que era o saber ele ficar distante do presente correndo de arrecuas como um comboio atravessando uma cidade: o passado engordando, e o futuro, ao longe, disformando-se, perdendo intensidade tal qual o fumo do comboio, cada vez mais longe.
Nessa tarde, fechara antecipado a porta da merceeira. Uma volta na chave enferrujada. Pesada. Enorme: nisso e no feitio, semelhava uma daquelas que vinham nas capas dos cadernos da escola que ele vendia, muito arrumados em resmas na prateleira de cima. Deu um jeito de antebraço sobre o acinzentado das tábuas que a tinta abandonara. Verificou-lhe a segurança. Falava-se por esses dias no Zézinho fugido da cadeia.
- Raspou-se da cadeia. “Inda malembro do” ver pela ribeira.
Anunciava a Teresa Leiteira nessa tarde, falando alto enquanto esperava que ele lhe medisse, com precisão no carregar do êmbolo, um decilitro de azeite para dentro da garrafita que trazia segura na mão destratada na apanha do grão ainda a manhã era mal parida, ainda eram brandos os talos aos puxões ensonados.
Ele entretido parecia nem a ter ouvido. O Senhor João da merceeiria como era conhecido, mesmo depois de tudo.
A porta resistiu ao esforço, mas um entre duas tábuas vincou-lhe de vermelho o braço nu de panos: era o pino do Verão e um sol esbraseante, escapado há meia hora por detrás do cabeço do monte, deixara uma tarde molenga e quase doce, assim como quem se lambuza com nuvem de açúcar.
E ele foi-se andando.
Regressando a casa.
E deram de se lhe misturarem na ideia dois acontecidos.
Ele andando e os pensares roendo.
Misturavam-se, em redondos, o vinco no braço e o contado pela Teresa Leiteira, num tom agudo e muito alto para as outras que eram duas, e mais ele: que andava fugido o Zézinho do Pego.
Os dois acontecidos remexendo-se pelas linhas do seu cérebro. Doendo-lhe. A ele que, desde que pisara chão de escola, ouvira dizer do seu: cérebro de passarinho. Dito de Dona Efigénia, tão feia, a professora morta uns anos depois. Morte imunda, a dela: uma diarreia que a desfez em menos tempo que o devido para que chegasse um médico ao cimo da serra. Fora-se em merda essa que lhe previra o destino: cérebro sem ideia, pequenino. Homem que não lê mais que duas letras, uma de cada vez; só depois unidas, fazendo o meio ou o terço de palavra; apenas por sorte uma palavra inteira e, as mais das vezes, sem que ele assim mesmo entenda aquela junção de letras. Assim lho avisara. Pequenino.
Ele atravessando o largo mal empedrado, passando em frente à capela, nesse fim de tarde. E os dois factos agindo. Agitando. O traço ardido no braço por via de lhe encostar em cima uma junção de tábuas de porta desfeita no passar das chuvas e dos sóis, anos e anos. O deambular, fugido de cadeia, sabia ele lá por onde, do Zézinho do Pego, anúncio fidedigno se vindo da Teresa Leiteira.
E neste ir subindo a ladeira enrolado naquele entrelaçado de dois acontecidos, ele ainda nem sabia recordar o Zézinho correndo, batendo os pés de fugir na margem da ribeira numa tarde de Agosto. Nem recordar a ela.
Ainda não se lhe reconstruía uma outra realidade ou, simplesmente, se gerava, o que lhe era raro, quase preciosidade: uma recordação.
Foi só depois de ter ele subido, em passo lento, a rua de calçada tão lisa que nela sempre chispavam ferraduras.
Foi só depois de ter aberto a porta da casa térrea onde morava com os dois cães e uma saudade escondida de seu entendimento, escorraçada por não ser ele dado a cismar com passados. Por não lhe ser de uso formar na ideia nuvens que fossem, ao menos, como diziam as mulheres que lhe compravam mantimentos e, por vezes, raras vezes, um pano de loiça ou uma toalha: “alembraduras”.
Foi só quando ele estava debicando um naco de pão onde entalava, a contas do polegar da mão esquerda, um naco de presunto.
A faca deslizando sem tino, seguindo os caminhos que lhe eram conhecidos: um jeito no cortar um pedacinho de carne e, entalando-o à folha da faca com o polegar, levá-lo à boca; a seguir, cortar um nico de pão e, com as pontas do polegar e do indicador, fazê-lo acompanhar no saborear da lasca gordurosa.
A faca deslizando, e o pão, e a carne. Gestos habituais. E ele se encaminhando para um mundo de antanho.
Ele levado para longe de ali.
Ele recordando como não lhe era dado.
Ela despida de adornos, airosa nos frescos aventais de chita, nas saias largas baixando ao tornozelo. As saias que levantava, enrolando-as nas virilhas, ao passar a ribeira atrás de um bezerro ou, longe de olhares, lá para os lados do Pego Grande, quando se lavajava: cada uma das pernas e os pés que trazia cuidados apesar dos trabalhos na terra.
Ela contou-lhe. Da tarde em que se despiu de saias e foi, sem elas e sem blusa e mesmo sem camisa, que se encontrou sabida de nadares.
Nadando, como sereia, na água que corria transparente e fria.
Um jorro que a cobriu. No Pego Grande.
Rogou-lhe a ele que viesse. Que a visse nadar. Muitas vezes. Que viesse com ela ao Pego Grande. Ela lhe nadaria como as sereias que seu avô contava que apareciam nas noites de lua cheia. No Pego Grande.
Nunca lhe fez a vontade.
Nunca a viu nadando.
Tem os olhos molhados de tão longe.
A faca escorregou-se sobre os nacos.
Olha-a numa tarde trazida de não sabe ele de onde. Igual em hoje.
A faca descai-se devagar sobre o chão liso da cozinha.
O avental de chita crescido sobre o ventre dela.
Ela boiando.
Uma sereia.
No Pego Grande.
Trá-la ao colo de dentro das águas recortadas de verdes e ofuscando do sol.
As silvas raspam-lhe ribeiros de sangue nos braços nus na tarde de Agosto.
As silvas que não prendem o que foge do lado de lá do Pego Grande.
Arde-lhe do vinco o braço no movimento de apanhar a faca que caiu: um baque frio no ladrilho vermelho da cozinha.
Levanta-se e fecha a porta com duas voltas.
(Não sabe se foi a saudade que o visitou, mas sabe que ficou mais só depois de se sentar cortando mais pão e mais presunto . )
Não. Não lhe é dado o toldar-se a página do caderno de assentos. Os deves e os haveres da aldeia: uma quarta de banha vermelha, decilitro e meio de azeite, acabados de apontar com a ponta romba do lápis de tinta que lhe deixa, ao fim do dia, uma marca azulada ao canto da boca. Desde o Natal passado, da Gertrudes Inácia, um parzito de peúgas “pró mé nete qué cá pague despois d’arreceber”. E, ao Ti Manuel da Eira, o rol crescia repetido e parco, cada dia, apenas um quarto de pão de centeio e “umas poucachinhas de azeitonas!”. Todos os dias. Há um ror de anos.
Não. Os assentos em letra borrada de cada revirar de página com a mão untada dos nacos de “toicinho” ou de um pingar do azeite, não se nublavam de saudades.
Varrera-se-lhe a memória da essência que era o saber ele ficar distante do presente correndo de arrecuas como um comboio atravessando uma cidade: o passado engordando, e o futuro, ao longe, disformando-se, perdendo intensidade tal qual o fumo do comboio, cada vez mais longe.
Nessa tarde, fechara antecipado a porta da merceeira. Uma volta na chave enferrujada. Pesada. Enorme: nisso e no feitio, semelhava uma daquelas que vinham nas capas dos cadernos da escola que ele vendia, muito arrumados em resmas na prateleira de cima. Deu um jeito de antebraço sobre o acinzentado das tábuas que a tinta abandonara. Verificou-lhe a segurança. Falava-se por esses dias no Zézinho fugido da cadeia.
- Raspou-se da cadeia. “Inda malembro do” ver pela ribeira.
Anunciava a Teresa Leiteira nessa tarde, falando alto enquanto esperava que ele lhe medisse, com precisão no carregar do êmbolo, um decilitro de azeite para dentro da garrafita que trazia segura na mão destratada na apanha do grão ainda a manhã era mal parida, ainda eram brandos os talos aos puxões ensonados.
Ele entretido parecia nem a ter ouvido. O Senhor João da merceeiria como era conhecido, mesmo depois de tudo.
A porta resistiu ao esforço, mas um entre duas tábuas vincou-lhe de vermelho o braço nu de panos: era o pino do Verão e um sol esbraseante, escapado há meia hora por detrás do cabeço do monte, deixara uma tarde molenga e quase doce, assim como quem se lambuza com nuvem de açúcar.
E ele foi-se andando.
Regressando a casa.
E deram de se lhe misturarem na ideia dois acontecidos.
Ele andando e os pensares roendo.
Misturavam-se, em redondos, o vinco no braço e o contado pela Teresa Leiteira, num tom agudo e muito alto para as outras que eram duas, e mais ele: que andava fugido o Zézinho do Pego.
Os dois acontecidos remexendo-se pelas linhas do seu cérebro. Doendo-lhe. A ele que, desde que pisara chão de escola, ouvira dizer do seu: cérebro de passarinho. Dito de Dona Efigénia, tão feia, a professora morta uns anos depois. Morte imunda, a dela: uma diarreia que a desfez em menos tempo que o devido para que chegasse um médico ao cimo da serra. Fora-se em merda essa que lhe previra o destino: cérebro sem ideia, pequenino. Homem que não lê mais que duas letras, uma de cada vez; só depois unidas, fazendo o meio ou o terço de palavra; apenas por sorte uma palavra inteira e, as mais das vezes, sem que ele assim mesmo entenda aquela junção de letras. Assim lho avisara. Pequenino.
Ele atravessando o largo mal empedrado, passando em frente à capela, nesse fim de tarde. E os dois factos agindo. Agitando. O traço ardido no braço por via de lhe encostar em cima uma junção de tábuas de porta desfeita no passar das chuvas e dos sóis, anos e anos. O deambular, fugido de cadeia, sabia ele lá por onde, do Zézinho do Pego, anúncio fidedigno se vindo da Teresa Leiteira.
E neste ir subindo a ladeira enrolado naquele entrelaçado de dois acontecidos, ele ainda nem sabia recordar o Zézinho correndo, batendo os pés de fugir na margem da ribeira numa tarde de Agosto. Nem recordar a ela.
Ainda não se lhe reconstruía uma outra realidade ou, simplesmente, se gerava, o que lhe era raro, quase preciosidade: uma recordação.
Foi só depois de ter ele subido, em passo lento, a rua de calçada tão lisa que nela sempre chispavam ferraduras.
Foi só depois de ter aberto a porta da casa térrea onde morava com os dois cães e uma saudade escondida de seu entendimento, escorraçada por não ser ele dado a cismar com passados. Por não lhe ser de uso formar na ideia nuvens que fossem, ao menos, como diziam as mulheres que lhe compravam mantimentos e, por vezes, raras vezes, um pano de loiça ou uma toalha: “alembraduras”.
Foi só quando ele estava debicando um naco de pão onde entalava, a contas do polegar da mão esquerda, um naco de presunto.
A faca deslizando sem tino, seguindo os caminhos que lhe eram conhecidos: um jeito no cortar um pedacinho de carne e, entalando-o à folha da faca com o polegar, levá-lo à boca; a seguir, cortar um nico de pão e, com as pontas do polegar e do indicador, fazê-lo acompanhar no saborear da lasca gordurosa.
A faca deslizando, e o pão, e a carne. Gestos habituais. E ele se encaminhando para um mundo de antanho.
Ele levado para longe de ali.
Ele recordando como não lhe era dado.
Ela despida de adornos, airosa nos frescos aventais de chita, nas saias largas baixando ao tornozelo. As saias que levantava, enrolando-as nas virilhas, ao passar a ribeira atrás de um bezerro ou, longe de olhares, lá para os lados do Pego Grande, quando se lavajava: cada uma das pernas e os pés que trazia cuidados apesar dos trabalhos na terra.
Ela contou-lhe. Da tarde em que se despiu de saias e foi, sem elas e sem blusa e mesmo sem camisa, que se encontrou sabida de nadares.
Nadando, como sereia, na água que corria transparente e fria.
Um jorro que a cobriu. No Pego Grande.
Rogou-lhe a ele que viesse. Que a visse nadar. Muitas vezes. Que viesse com ela ao Pego Grande. Ela lhe nadaria como as sereias que seu avô contava que apareciam nas noites de lua cheia. No Pego Grande.
Nunca lhe fez a vontade.
Nunca a viu nadando.
Tem os olhos molhados de tão longe.
A faca escorregou-se sobre os nacos.
Olha-a numa tarde trazida de não sabe ele de onde. Igual em hoje.
A faca descai-se devagar sobre o chão liso da cozinha.
O avental de chita crescido sobre o ventre dela.
Ela boiando.
Uma sereia.
No Pego Grande.
Trá-la ao colo de dentro das águas recortadas de verdes e ofuscando do sol.
As silvas raspam-lhe ribeiros de sangue nos braços nus na tarde de Agosto.
As silvas que não prendem o que foge do lado de lá do Pego Grande.
Arde-lhe do vinco o braço no movimento de apanhar a faca que caiu: um baque frio no ladrilho vermelho da cozinha.
Levanta-se e fecha a porta com duas voltas.
(Não sabe se foi a saudade que o visitou, mas sabe que ficou mais só depois de se sentar cortando mais pão e mais presunto . )
11 comentários:
QUE COISA!!!
Até irritas de tão bem que o fazes!
(Lindìssimo...)
Caramba, mulher! Volta uma pessoa esfalfada e dá com isto! Caramba!
Escritora, não perdes o fio à meada nunca e descreves tudo ao pormenor.
Mas isto já sabes , estou sempre a repetir-me.
Magnífica prosa!:)
Beijos
Magnificente ainda que entre espinhas de silvas e não-recordações, ou então capturadas por momentos breves, desvanecendo-se como o tal combio que atravessa a cidade. A tua escrita é mais do que brilhante!
Bom dia, M.
Beijinhos, amiga
Imagino que na tua cabeça tudo faça muito sentido e seja claro nesta narrativa de suspensão, mas para mim, que leio, há uma enorme dificuldade em seguir-te neste texto. Julgo ter entendido, mas a minha dificuldade perante os saltos da narrativa aliado aos saltos de sintaxe (como é o teu jeito) embaraça-me um pouco (não sei se pela presença de personagens acessórias, tb..,)
Escreves como fulgor da simplicidade do conteúdo Brilhante mas genuíno. A literária é excelente. Parabéns.
Bj.
Habitualmente sou comedida nos elogios. Hoje tenho de dizer: Brilhantes, estupendos, os teus contos.
Espero que não se fiquem pelo virtual. Merecem muito maior destaque.
Um grande abraço.
continuo a sentir-me est�pida � 3� vez que leio este texto (e os outros coment�rios n�o ajudam nada, s� refor�am). A esta altura acredito que tenha sido o que pretendes (que eu n�o perceba e fique est�pida em torno das palavras, presa, e tu a fintares, da� que to diga. Mereces ouvi-lo. :)
(faz-me confus�o n�o perceber TUDO! quero perceber. Podes rir, claro.)
Beijo! :)
A mim parece-me brilhante!
Ás vezes nós temos a tendência para elevar o patamear daquilo que gostamos e colocamos as "coisas" lá. Defeito? Não sei! Acho que aqui não fui longe demais já que a referência é a blogoesfera, onde, diga-se em abono da verdade, se lêm peças de literatura de excelente nivel.
Está bem esgalhado sim senhora! Por isso -e como estou bem-disposto, dou-te um abraço de parabéns.
... e assim como quem não quer a coisa, que deves estar distraida com os elogios, levo-te um pedaço de pão e de presunto da última linha do conto. Pensavas que só te fanava os gatos?!
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