domingo, 19 de agosto de 2007

Luandino

Luandino apalpava-lhe as mamas com dedos lassos. Dedos que lhe escorregavam nas axilas, frouxos.
O côncavo da mão recusava-lhe os bicos.
Afagava-a em medrosos receios. Parecia-lhe a ela que ele afagava a testa suada de um velho.
E era sexo o que ela queria.
Sem denguices e nem rodeios.
Encostou-se nele. Sentiu-lhe o sexo sobre o vestido fino. Segurou-lhe as nádegas. Redondas, tensas. Roçou-se. Cabrita maltês, pendurou-se-lhe no pescoço. Ganhou-lhe vantagem. Quebrou-lhe a anca magra com as pernas nuas de saia. Desceu-se, lenta. Desfez-lhe o cinto. O botão. O fecho de cima para baixo, que é o jeito. Mirou-o: quedo, surpreso, decerto.
Virgem arrependida, ela beijou-lhe cada mamilo descoberto dos botões que desfez em pressas. Nem precisou mover-se: ele era alto e ela nem se cresceu mais que o metro e cinquenta e quatro. Nem mais um centímetro que o andar de salto alto, até muitos anos passados sobre essa noite.
Ele depressa se desentendeu com os receios. Arrematou-os. Limpou-se de surpresas. Juntou-se a ela na luta contra eles. Beijou-lhe a boca, sôfrego. Atabalhoado, a língua que lhe rebuscaria interiores, nem eles ainda o sabiam, dançou-lha por cada mamilo em redondos molhados. Ainda não cuspidos que isso a noite o ditaria, mais o desassossego da lua e da partida.
Ele debruçado nela.
Os receios perdidos, pensava ela, muito branca e ruiva mesmo sem a luz da lua que ainda nasceria.

A dois passos a sala de jantar onde um candeeiro se acendeu recortando em negro, o cachimbo e o fumo. E a voz que afagou o escuro no que nem era um chamar, era um pedido.
- Júlia.
O pai Antunes chamando para jantar.
Ela nem respondia. Apenas aparecia sentada na mesa comprida da sala. Era assim há anos.
Não mais amanhã. E nem depois. Quem sabe nunca mais.
Desprendeu-se do corpo dele que levara, como costume, susto. Ela riu-se. Luandino enterrou as mãos nos bolsos do casaco verde roto nas mangas sobre as pulseiras e o relógio de pulso. Tudo em doirados como o anel que trazia no dedo mindinho de cada uma mão. Júlia apegou-se a ele. Dengou-se ainda um pedacinho. Quente animal em cio. Passou-lhe a mão entre as virilhas a sentir-lhe o membro. Apertou de leve num misto de raiva e em afago.
Num desespero, pensaria, se fosse, ao momento, o caso. Se fosse mais tarde. Um dia.

Na mesa coberta de linho bordado, os copos gorgolejavam ao cair dos sumos, dos vinhos, da água. Júlia comia o peito de galinha com quiabos. Calados, ela e o pai. Silêncio só quebrado ao café. Era o hábito desde que lhe morrera a mulher fazia dezoito anos. Tantos quantos a distância do dia em que a pariu a ela, Júlia. Silêncio durante as refeições.
Só a voz de Joaquina servindo os dois. Como podia ser assim:
- Quer que sirva a sobremesa, sinhá Maria?
Sempre se dirigindo a ela. Desde pequenina, ela era a mulher da casa. Sempre lhe chamando de sinhá Maria.
Julinha, apenas quando se sentava na bordinha da cama contando estórias velhas: do tempo em que a mãezinha era viva, antes da menina nascer. Ou outras coisas, que ela dizia serem para o paizinho não sofrer.
- Não anda com Luandino, Júlinha. Ele não presta. Seu pai não gosta. Vê: ele nem é homem de lhe merecer.
Júlia comia a talhada de manga, silenciosa. Sentia o sabor do corpo de Luandino misturar-se ao sabor da fruta. Sorriu-se. O tecido da blusa roçava-lhe, desusado, cada mama.
Bebeu em goles lentos a bebida gostosa de pura cafeína. Ouviu o pai falar da fazenda. Lembra-se bem: nessa noite, falou-lhe da doença nas vacas que aleitavam.
-Seca-lhes o leite ou este enfraquece. Já morreu um bezerro.
E ela, pensando em mamas, sorriu para dentro da chávena onde aparecia, ténue, a cara de uma chinesa: porcelanas que a mãe levara de enxoval.
Beijou-o de jeito calmo e terno que nisso nem precisava fazer esforço: ela gostava dele. Muito ela gostava daquele pai viúvo.

E foi dançando pelo corredor. Abriu de em par a porta da cozinha e saiu para a lua que alumiava, branca e amarela. A lua que fazia quase em oiro, a terra vermelha das traseiras. Levou pela mão a bicicleta até chegar à estrada: uma língua da terra batida a maço, mal coberta de uma fita que já fora preta. Pedalou depressa. Cruzou-se com o jipe do tenente Matias. Ía para a sanzala. Era o seu costume. Ela sabia. Acenou-lhe e riu sem muito bem perceber ao que achou piada. Sincopou no para cima e para baixo, em redondo, o pisar do pedal.
Lembra-se que ía serena, no lusco fusco, que a lua se fizera alta e as árvores adensavam copas sobre a estrada.
Passou a casa do Chefe de Posto e contornou à esquerda. Abriu o portão de ferro: uma cancela ferrugenta. Encostou a bicicleta no muro baixo. Chamou sob a janela entreaberta.
- Luandino…

A lua iluminava o quarto sem mais móveis do que a esteira desdobrada no chão de cimento. Isso, e um pano de cores a servir de nada aos corpos deles, nus, ferventes, e ao quente da noite com lua.

Vagueavam pedires ao longe que ela não ouviu:
- Júlia.
Era o pai Antunes.
Como ela adorava aquele pai viúvo.

Na vinda, trazia-se renovada. Doíam-lhe ardendo, os bicos dos seios sob a blusa que trouxe desfraldada. A bicicleta enternecia-se aos seus pedalares.
Era o finzinho da madrugada.
Na cozinha, havia pão com doce de goiaba e um copo de leite muito branco e ainda morno. Joaquina quem deixou. Sorriu-se: um sorriso que lhe enviou a ela que logo, logo ia acordar.
Dançou-se semi nua na cozinha.
Partia dentro em pouco. Nesse dia.
Ía no jipe do tenente até ao aeroporto.

Nunca mais viu Luandino.
Num Maio, tão longínquo que nessa noite nenhum deles sabe que existia, deparou-o.
Era Lisboa. Rossio. Ao fim da tarde.
Tanto ano passado sobre a noite de lua. Tanto estropiado e tanto morrido. Tanto passado e tanto presente se fizera nela desde aquela noite.

Ele encostado ao ferro da boca do metro. O Luandino. Preto retinto. A carapinha encanecida nas fontes. O Luandino dependurando doirados sob as mangas coçadas de um casaco.
Sob o vestido justo que trazia, os bicos dos seios adensaram-lhe recordados. Ela estranhou-se.
O homem reagiu ao seu estar ali parada, olhando-o: pediu-lhe dinheiro para o almoço. Estendeu-lhe a mão de dedos longos.
Os dedos dele: iguais, palpando, remexendo, explorando, na noite de lua, naquela noite grande.
E ela com a nota esquecida, perscrutava-lhe um vislumbre sob as lentes negras de contrabando.
Ele agradeceu:
- Deus a guarde, senhora. Deus é grande. E Alá ,dizem, também.
E riu um rir de um lugar sem onde.

Júlia seguiu pelo passeio. Procurou perder-se nas gentes.
Perder-se do seu eu chorado.





Para a menaG do Lagos


16 comentários:

vida de vidro disse...

As terras de África nas tuas palavras. As cores e os cheiros das memórias. Belíssimo, como sempre. De nos deixar desejando ler mais.
Tenho andado a reler Mia Couto. Garanto-te que o prazer de te ler é igual. Mulher de saudades, quero um livro de contos teu. Na minha mão. :)**

Mateso disse...

Lento mas forte o cheiro penetrou-me a alma. Cheiro de germinal em terra húmida de África.
Dizer-te que escreves excelentemente, é trivial.
Parabéns.
Bj.

CNS disse...

Já cá tinha vindo. Mas o intenso das tuas palavras teve de ser saborado primeiro, antes de qualquer comentário. Quente esta memória de Africa. Deixaste-me inebriada com o cheiros dessa terra-mãe que não conheço. Obrigada.
Beijo

PostScriptum disse...

És fantástica na arte de passar sensações. Por instantes senti os cheiros inebriantes de África.
Parafraseando a VV: para quando um livro?
Beijos.

Gi disse...

perco-me em memórias
nas tuas memórias .

com essas cores e cheiros reais
nessas histórias inventadas.

palavras por ti escritas .sentidas .

daqui lidas, bebidas, tragadas.

Um beijo daqueles :)

Nilson Barcelli disse...

O conto esgana-te.
O teu fôlego é de romancista.
Só tenho uma palavra: SOBERBO.
Beijinhos.

PS: este comentário é extensível a vários posts anteriores. Gosto deste tipo de registo, onde me pareces mais completa (mas é a opinião de um leigo na matéria...).

Luís Maia disse...

Não há mais palavras depois do que já li aqui

Lá foi ele para ao meu Blorganaizer já que o quero à mão para o reler quando me apetecer

http://blorganaizer.blogspot.com/search/label/Luandino

Luis Maia

Anónimo disse...

Aqui, sem palavras... Beijo!

wind disse...

Escritora, África e Mia Couto estão aqui com mais algo teu.
Sublime!:)
Beijos

ND disse...

por acaso, e antes de ler o Nilson Barclli, nunca o tinha pensado, mas talvez tenhas mesmo esse fôlego, esse grande fôlego. E sabes porquê? (agora que alguém deu a partida é-me mais fácil seguir no enredo pensado)porque tu gostas das tuas personagens, não é só das palavras, menina.

éf disse...

Ahh... isto tá magnífico.
E uma vez que sabe escrever, porque não publica?

;)

Ana Paula Sena disse...

Magnífico, Sei Lá! Muito bom texto e muito boa história. Vale a pena ler-te! Volto para continuar... :)
Beijinhos para uma escritora!

Menina Marota disse...

Nesta soberba narrativa, lembrei a minha África, as suas cores, o seu pôr do sol, as suas Gentes. E apeteceu-me chorar!

Consegui imaginar cada momento... como se um filme se tratasse.

Magnifica conto!

Um abraço carinhoso e boa semana ;))

(e obrigada pelo teu poema, que já está lá com as devidas honras.)

Santos disse...

Muito bom mesmo.

Beijinhos

Anónimo disse...

soberbo!!!!!
(Luandino:luandinovieira????)

vieira calado disse...

Bem bom, Fátima!

Estás cada vez melhor...

Bjs

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein