sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Era uma vez...


Assim começam as histórias. Não falta ao costume a que vos conto.

Era uma vez uma rainha que vivia num castelo. Como qualquer castelo, este era enorme. E a rainha, como qualquer rainha, tinha muitas aias e criadas e cavalos e tinha muitos vestidos e sapatos e, claro, era casada com um rei.
O rei era um homem de barba caída sobre o peito e com o cabelo aos caracóis em cima do qual usava uma coroa em ouro e diamantes. Era uma coroa muito pesada que o rei só tirava à noite, quando se deitava. E, desde há uns tempos, o rei tirava-a para ir à taberna. Disfarçava-se numa capa enorme e levava na cabeça um chapéu de abas. Era nas noites em que vinha ao reino um enviado de outro castelo falar-lhe de negócios.
A rainha era uma mulher vistosa. Chamava-se Deolinda e andava sempre muito arranjada com vestidos cintados com lantejoulas e espartilhos e saias rodadas de seda e outros tecidos muito finos, alguns bordados, e capas de veludo apenas tapando os ombros e outras arrastando pelos soalhos e pelos empedrados.
E a rainha tinha um dom: ouvia muito bem. Diziam que era capaz de ouvir um segredo contado junto ao ribeiro que corria a umas boas jardas do castelo.
Na tarde desta história, a rainha está sentada no jardim e tem no colo um ramo de rosas. Rosas chá de que ela tanto gosta. Traz o cabelo enfeitado com uma tiara fina, em ouro sem pedras nem rendados.
De repente, fica com o olhar fixo no horizonte que era, ao caso, o conjunto das ameias defronte. Agarra com as duas mãos o caule das rosas. Escorre um fio vermelho que lhe suja a saia branca do vestido.
Inês, a aia velha que a criou, empalidece: sabe que dali, daquele ouvir atento, não vem senão desgraça. Prouvera que desta feita ela se engane.

A rainha ouve o som de um gargalhar. Um riso de mulher. Um riso lindo.
Fica mais atenta. Escuta. O ar foge-lhe. Concentra-se. Rolam-lhe os dois olhos nas órbitas.
Lá muito longe, em outro castelo, uma figura alta, uma mulher bela, o rosto encimado de um chapéu de bicos, o cabelo atado em duas tranças presas sobre a nuca com ganchos.
Mas não vê isto a rainha.
Do que decorre lá longe, ela ouve um som de beijo. Alguém que se despede de outro alguém.
Nos ombros, a mulher trás uma capa de tecido grosseiro. Disfarça-se. Monta uma égua preta.
A rainha ouve o bater dos cascos. Intensos.
Estrebucha.
Ouve também o tic tac do coração daquela que falou bem claro:
- Gerar um filho dele é o que quero. Não vou mais disfarçar. Podes contá-lo. Hoje na taberna, vou fazê-lo. Serei rainha daquele reino.

O castelo efervescia de vida àquela hora em que o sol se despedia. Andavam cirandando uns e outros em afazeres.
E a rainha ouvindo longe. Muito longe, naquele fim de tarde.
Na sala do trono, com a coroa bem assente, brilhando a uns raios de sol que entravam mesmo sobre o trono, o rei cochila ouvindo os relatos dos homens da corte. Espera que a noite lhe traga o encontro na taberna com o estranho.
Espera ansioso, ronronando, desatento dos relatos.
De repente, estremeceu o rei com o barulho que se ergueu pelo castelo.
Ergueu-se do trono. Quase correu, ao encontro daquela gritaria.

No jardim, encontra, rodeada de aias tontas, a sua rainha.
Desfeita de arranjos, desgrenhada, descomposta de ares reais, Deolinda estrebucha, espuma, endoidada, no terreiro em volta dos jardins de rosas. Cuidavam segurá-la as aias, mas em vão. A rainha está quase em possessão. Uma cruz com Cristo nu, tapadas só as partes com um pano que era esculpida madeira, como o resto, debruçaram sobre a cabeça de Sua Alteza a Rainha. Nem o poder da cruz a pára.
A calma só volta quando o rei, deitando em terra um joelho, lhe beija, de leve, a face fria. Descai ao rei a coroa. A rainha sorri.
Muito ao longe, ainda ouve um ruído de cascos.
Acalma-se o castelo. O sol pôs-se.

Nessa noite, o rei não deixou a coroa no seu quarto e não vestiu a farpela do disfarce.
Correram logo vozes. Que no reino, dentro de meses, os contados em luas e em quartos, haveria um príncipe.

Entrou um vulto na taberna. Ficou sozinho, sentado numa mesa. Pediu uma caneca de vinho. Passaram horas. Muitas horas.
Já era a noite grande, partiu em desfilada numa égua negra.
Conta quem lhe viu o rosto belo que saíu chorando.


17 comentários:

Gonzalinho disse...

é bonitinha sua hiestoria
disculpe si vocé nao entende muito meu "portunhol" eu falo espanhol
sou da bolivia

é divertida e interesante seu blog

comprimentos para vocé

xiao

calamus disse...

EScrever bem vale a pena. :)

Sissi disse...

Mais um belo conto, como sempre.
Quem me dera saber escrever assim.
Beijo

Anónimo disse...

Outra história de encantar, cheia de subtis encantamentos - particulares!

Mateso disse...

Príncepes e princesas de contos de encantar. Encantada ...do encantamento da tua escrita.
Debve haver algum "feitiço" por essas terras do sul...
Bj.

hfm disse...

As extrapolações que este texto permite... belíssimo!

Gi disse...

Pelos vistos é coisa antiga essa a de se pensar que um filho "agarra" um homem. Quantas mulheres já não se prenderam à mesma ilusão ...

Azar o da cavaleira da égua preta que a rainha não tivesse uma rinosinusite que a deixasse surda que nem uma porta :).

Estive a ler o texto em falta. Deixas-me sem fôlego. Excelente como sempre.

Beijinho (mas grande, como sempre)

Mena G disse...

....................
Deixas-me sem palavras, até para comemtar.
Espero que já saibas que és genial.
Soberbo.

Gracinha disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gracinha disse...

"Bendito e louvado... O conto está tão bem contado!"
Que bom é ver que contos ainda se contam.

Muito obrigado pelos tão simpáticos comentários na minha "caixinha de rabiscos".

Um beijinho!

Delfim Peixoto disse...

Um conto agradável e sobretudo com um final bonito; os homens também choram
:)

Alberto Oliveira disse...

... em primeiro lugar, parabéns pela disposição da página do blog.Assim, a leitura dos textos faz-se muito melhor.

Parabéns também pela história, desta feita com alguns entremezes de ironia que como sabes muito aprecio.

Finalmente -não sei se por ter chegado um pouco atrasado, ou por a égua ser demasiado rápida para os meus olhos, já não consegui descortinar o rosto chorando. Mas se tu o escreves, acredito.

wind disse...

Escritora, belíssimo conto com variantes encantandoras:)
Beijos

Fay van Gelder disse...

Olá e Obg pela tua visitinha amiga:)

Ai mas essa cobra... xiii... detesto coisas rastejantes -(

Mas adoro a tua forma de escrever.

Bjo e Tem uma Super Semana Cheia de Luz e Paz.

Fay van Gelder disse...

Minha querida, atenção que não é por não gostar de cobras, que não volto cá.

Mesmo não gostando delas (cobras), volto sempre cá, pois adoro ler-te.

Bjo.

PostScriptum disse...

Belo...

perplexo disse...

Ah, marafada que escreves bem como o raio. Que inveja!!
Bj

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

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meu honroso quarto lugar

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"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
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