domingo, 29 de julho de 2007

Cumplicidades



Naquele dia deixei a janela entreaberta e era muito tarde.
Era uma noite quente aí por Dezembro.
Talvez nem a janela estivesse mal fechada, mas apenas uma das portadas que eram verdes com tábuas sobrepostas, descaiu da outra e um sopro de brisa terá desfeito o que seria fechado, e pronto: ficou a janela com uma greta escancarada para a rua no rés-do-chão que era a moradia onde eu morava nesses tempos.

Isto mais ou menos, o que a minha mãe pensava e afirmava depois.

Era uma casa térrea com uma entrada da frente formada por um vão, telhado por um caramanchão de tília entrelaçada a bunganvília em cachos de rosa e amarela. De cada um dos lados da porta por onde se entrava na casa por debaixo daquele tufo fresco, ficavam duas janelas largas. Esta frente estava virada a poente e tinha um terraço com um banco e uma mesa comprida encostadas ao muro de cimento que se debruçava, inclinado, sobre um morro de verdes e amarelos de matos e argila. A sul e a norte, a casa tinha outras janelas daquele tipo e era nas traseiras, virada ao nascente, que ficava a entrada verdadeira, e a saída, dos que ali viviam e éramos nós os três e a criada, ou de quem aparecia sem ser convidada. Uma porta de vidros, grande, onde o sol batia entre as sete e o meio dia, deixando riscos e sombras e rendas nos azulejos da cozinha. Retratos que o sol fazia das glicínias entrelaçadas com parreiras que o meu pai teimava em fazer crescer por aqueles lados e encimavam a porta da cozinha e todo o resto que eram duas janelas grandes, a da sala de jantar e a do meu quarto.
Esse mesmo quarto onde, numa noite quente, eu deixei mal fechada a janela que deitava sobre o terraço de cimento liso com uns salpicos de azulejos verdes como se sobejados de uma obra grande e deitados por ali a eito. Um terraço que era afinal o mesmo que, começado na frente, rodeava toda a casa e que deste lado se debruçava sobre o morro com o porto lá ao fundo e pelo menos um barco de grande calado sempre acostado e o mar até lá muito a perder de vista.
Por mais que queira, e quero-o bastante, não sei descrever a casa. Lembro-me bem deste terraço e do que dele se avistava, e das flores, mas não me lembro da sala, apenas da mesa e do lugar onde eu me sentava sempre à esquerda do meu pai. Não sei onde se sentava a minha mãe. Não sei ligar a porta da frente com a cozinha, nem sei como se relacionava com o meu quarto. Sei que havia um corredor, mas desfaz-se-me a memória dele num quadro grande representando uma perdiz morta e muitos frutos em cima de uma mesa. Nem estou certa se esse quadro ocupava antes a parede da sala de refeições. São vagas as minhas memórias das coisas.
Memória, isso tenho, da cozinha coberta de azulejos brancos debruados à altura da minha cabeça desses tempos de quase criança, e a toda a volta, com um friso de entrelaçados de ramos de azeitonas muito verde/cinzento de que o meu pai se orgulhava ter feito o desenho e dizia ser a cor fidedigna. Termo que só percebi mais crescida, talvez ao tempo em que decorre este contar que faço, ou talvez antes, e me ficou, se calhar por isso, como recordação. A gente sabe lá porque esquece ou guarda. Indiferentemente não será, não.
Podia descrever toda a cozinha em pormenor. Enorme, tinha ao centro uma mesa coberta com uma pedra de mármore onde a Maria das Dores nos dava deliciosos lanches nas tardes de estudo quando chovia e não podíamos ficar pelo terraço. Nós, os que entrávamos pela porta de vidros, cozinha adentro espalhando sorrisos e cantares nas tardes de estudo ou nos finais, coloridos de vestidos e fitas, das matinés de cinema ou dançantes. E lembro do odor a bolo de laranja acabado de sair do forno.

Era Dezembro de 1958 e eu fizera quinze anos.

Nunca lhe disse. Ela também não me perguntou.

Olhou-me como se afirmasse sem sequer perguntar.
Olhou-me como olhava o meu pai quando ele vinha no jipe acompanhado da Maria Teresa. Como me lembra bem do nome dela! Delgada e muito morena do mulato que lhe corria no sangue. Baixinha e sorridente a enfermeira que trabalhava com meu pai. Conduzia o jipe verde da tropa e trazia o meu pai até em frente da porta da cozinha. Quando o meu pai entrava sempre naquele sorriso alegre, apanhando uma ou duas flores que pendiam nas ramadas verdes, a minha mãe olhava-o com o mesmo olhar com que me olhou na manhã a seguir aquela noite. Um olhar de certezas.

Não. A minha mãe não me perguntou nada naquele início de dia de Dezembro. Nem depois.

A janela ficara aberta e ele entrou de manso. Tão de manso que nem o senti e nem às sombras que mais espalhadas se fizeram sobre o soalho castanho e nem ao cheiro mais intenso das glicínias.

Ela disse depois: “a tua filha dormia.”, e disse muitas outras coisas.

Eu estava de olhos bem abertos quando ele se sentou na beirinha da cama pegando o seu corpo magro à perna que eu tinha por baixo duma fina colcha de linho branco bordada ao centro com um menino transportando um cordeiro entre os dois braços. Lembro-me que era essa colcha a que estava descaída da minha perna vestida com a calça azul do pijama de seda que a minha mãe me dera porque não gostava.
Ele ficou sentado, muito quieto. E eu sentia o seu respirar que tinha cheiro de pastilha elástica: ele respirava devagar, soprando como quem está cansado e o ar que lhe saía do peito batia directo no meu nariz. Lembro-me que voltei, muito devagar, a cara para o lado, mas sem deixar de o olhar.
E ele era ele.
Negro como o escuro mal desfeito pela luz que ficou entrando pela janela.
Era uma noite quente e ficamos uma infinidade olhando-nos o que podia ser olhado na escuridão do quarto e que era o descobrir que estávamos ali juntos. Quietos. Um ao pé do outro sem quase nos mexermos. Sem mais que o respirar de cada um.
E quando ele se debruçou devagar e me beijou os lábios, eu chorei soluçado e ele alisou-me em afagos os cabelos e o rosto com gestos lentos enquanto me dizia, embrulhado em odor de menta, “amo-te”, sobre a almofada.
E, antes de adormecer, eu lembro-me que me disse: “boa noite, princesa” que era como me chamava quando passava no corredor do liceu na hora da entrada ou debruçado do andar de cima quando eu estudava ou conversava no jardim.
Sei que eu não disse nada. Nem uma palavra. Apertei-lhe as mãos e beijei-o quando ele se debruçou mais outras vezes. Uns beijos quentes a saber a hortelã-pimenta e eu calada, muito contente porque ele me amava.
Lembro muito bem que ele se deitou de costas a meu lado segurando a minha mão na sua.
E lembro que o corpo dele era um lago fresco que cheirava intensamente a muitos cheiros quando adormecemos.
O pijama azul que a minha mãe me deu por não gostar dele, estava desfeito em duas peças no sobrado quando o nascente o pintou de sombras das glicínias.

Ela nunca me perguntou nada.

Quando o levaram na carrinha de janelas pequenas repletas de grades, eu fiquei sentada no terraço da frente.

À minha mãe nunca contei nada, mas hoje apeteceu-me dizer-lhe o que realmente se passou naquela noite em que ele entrou pela janela que eu deixei mal fechada.
E fico feliz se ela ler estas palavras. Talvez as possa ler. E talvez, quem sabe, nem mesmo na eternidade a que se guindou faz mais de um ano, o cabelo prateado como já o meu vai ficando, ela queira saber o que se passou naquela noite.

Nessa manhã depois da noite, ela dizia ao meu pai:
“o preto entrou no quarto da tua filha, dormiu com ela e tu não dizes uma palavra. Só falta ires soltá-lo.”


E ela nunca soube que o meu pai foi no jipe com a enfermeira Maria Teresa.
E ela nunca soube como eu o amava, nem que quando ele entrou devagar no quarto onde eu deixara mal fechada a janela, eu estava muito bem acordada.
Como não soube que ainda guardo o pijama que ela me deu porque não gostava e era azul e ela deitou para ser queimado num balde com petróleo.
Deu-mo, já lavado, a Maria das Dores.



destaque em bloganaizer

11 comentários:

ND disse...

faz suspender a respiração, sabias?

CNS disse...

Arrisco-me a dizer que de todos, este foi o que mais me marcou. Dizer lindo é pouco.
bjs

Alberto Oliveira disse...

... andas inspiradíssima. E a escrever bem e em quantidade o que me impossibilita de acompanhar a tua passada (na forma de comentários mais sérios ou menos irónicos) até porque tenho andado aflito duma perna. Meto-me em cavalarias altas e depois tramo-me. Fui jogar futebol de praia aqui na Costa e levei uma pantufada dum gajo parecidíssimo com o Mantorras, que me deixou a pão e laranjas...
Vou aproveitar e convalescer longe da blogosfera pois quando escrevo não consigo estar quieto com os pés...

éf disse...

lindíssimo.

Menina Marota disse...

Bem... retive a respiração até ao último momentoe deixei-me embalar pelo encantamento da tua escrita.

Vim deixar-te um abraço reconhecido, por teres ajudado os meus filhotes a prepararem a surpresa que me fizeram e as palavras sensíveis que me ofereceste no teu poema...

Um abraço carinhoso e toda a minha imensa gratidão.

Bj ;)

perplexo disse...

Lindo, bem escrito e bem estruturado. Bjs

Gi disse...

O meu "princesa" foi pura coincidência. Ainda dizem que não as há :)
Belíssima a história. Estas falas entre silêncios onde tantas vezes se fazem leituras erradas.
Um dia que possas , se é que ainda não o fizeste , lê os cem sentidos secretos da Amy Tam, também muitos dos seus livros nasceram da problemática nas relações mãe-filha.

Não estou a 100% mas farta de estar inactiva. Talvez hoje haja novidade :)

beijinhos

Jorge Castro (OrCa) disse...

Hummm-hummm... bem espelhada essa noite de sedas. Quase poderíamos lá estar todos, se a tua intimidade o permitisse.

Motivador, também.Apeteceu-me falar sobre as minhas iniciações juvenis.

Decerto um "momento perfeito", aquilo que os ímpetos adolescentes tanto anseiam e que, quando temos a fortuna de que se concretizem, ficam a valer para a vida. Ficam a valer uma vida.

Bem (d)escrito.

Beijos.

vida de vidro disse...

Saio daqui com um sorriso suave. A tua escrita é um banho de sensações. Aromas, cores, tudo vive nas palavras. Um beijão daqueles.

Luís Maia disse...

Gostei muito eis a razão porque escolhi o texto para o meu blogue

http://blorganaizer.blogspot.com/

as intenções e as regras estão explicadas no sub-título é só dizer

wind disse...

Escritora fiquei sem fôlego, juro.
As tuas palavras hoje mexeram muito comigo:)
Beijos

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

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