quarta-feira, 27 de junho de 2007

bolo de boda


Era uma menina sentada num degrau. Degrau de escada, não. Apenas um poial. Um degrau de bolo em pão de ló. A menina sentada tinha saia de renda e uma orelha encostada aos salpicos de amêndoa torrada e aos laços cor de rosa de açúcar em pó. A menina tinha cruzadas as pernas com peúgas de algodão branquinhas, iguais à cobertura que o bolo tinha nos lados e em cima.
Era um bolo grande. Não um vulgar bolo redondo. Não. Era um bolo quadrado e com dois degraus, num dos quais se sentava de saia de renda e dois soquetes brancos nas pernitas cruzadas, uma menina de cara redonda com faces encarnadas e boca em forma de bombom, rosada.
Tinha as mãos enterradas no açúcar e os cabelos confundiam-se com os fios de ovos que saltavam dos dois buraquinhos que as mãos faziam. Tentei falar com ela, mas voltou-me a cara. Rodou-se e ao bolo num instante e fiquei a perceber que afinal a minha menina era um doce. Olhei-a por detrás e vi que tinha, a segurá-la para que não fugisse, um pauzinho de canela e um palito.
A festa começou e eu nem via, embasbacado que estava a olhá-la: que fora doce de se comer não me importava, o que me magoava é se a tragavam, se a partiam, se, muito pior, mas bem viável, se lhe espetavam uma faca na barriga.
Arrepiei-me só de imaginar e nem deixei evoluir o acaso. Precipitei-me sobre o bolo que enfeitava, mesmo ao meio, a mesa grande daquela festa de comunhão e baptizado.
Parece que fiz grande alarido, que terei puxado a menina sem cuidado. Parece que ela terá gritado ou se terei sido eu, isso não sei.
Sei que a aconchegava no cotovelo dobrado como se embalasse eu um bebé, quando me puxaram em vozes e levaram de lá do baptizado para este sítio aqui onde nem vejo se está de sol ou se está nublado.
Estou por estes lados já vão fazer uns dias e da menina nem me dão notícias. E eu pedi. Fui delicado: gostava de saber, se faz a gentileza, se terei magoado a minha princesa. Gostava ainda que dessem à menina um recado. Digam-lhe que eu tentei salvá-la mas fui desastrado.
E para aqui estou comendo pouco.
Bebo muita água e cheiro: quando eles não estão aqui por perto, retiro do bolso do casaco o pauzinho de canela com que a desprendi e passo-o, encantado, pelas narinas.
Mal me deixem sair, que dizem que o farão se prometer que me comporto, vou a correr, àquela loja que há no largo, ver a menina sentada num degrau de um outro bolo, de um outro baptizado. E quando se distraírem a comer os bolinhos, eu salvo-a. Desta vez, vamos ver se não faço asneira. Se sou desembaraçado.

12 comentários:

CNS disse...

Delicioso!

Gi disse...

E isso também é amor.

Um amor doce
apetecido
protector
desastrado
e no fundo tão ... querido.

É tão bom ser-se o doce de alguém e a tua história

também é um doce.

Saio a lamber os dedos de um bolo que não comi, desço o degrau
feita boneca :) lol

Beijinhos

Alberto Oliveira disse...

... desta nem me lembrava eu. Uma menina-doce sentada em cima de um bolo. Eu acho é que a menina era uma grande distraida e o bolo seria enorme para uma menina-doce-distraida se poder sentar em cima dele. Quase que aposto que nem limpou os sapatos antes de se escarranchar no "bolo da boda". E a falta de jeiteira do homem que nem sabia pegar na menina?! Que coisa diferente havia a esperar se não dão formação a um homem como este cuja grande preocupação era "se comiam a menina". Com franqueza...

wind disse...

Escritora, clap, clap, clap:)
É a 2ª vez que afloras um caso de demência ligado a amor, desta vez a um amor doce:)
Deliciosa prosa, só provas que mereces todos e mais algum prémios que houver na blofoesfera:)
Quando arranjas quem te edite o que escreves?????:)
Beijos

Alexandre disse...

Será que sobrou aí uma fatiazinha do bolo... e do texto?

Anónimo disse...

Gostei mesmo muito, escritora (como diz a Wind, e muito bem). Mas viver das memórias do sabor do açúcar e do aroma da canela que já foi não enche barriga de ninguém. A haver diabetes de tipo 2, ao menos que se chafurde profundamente em guloseimas. Beijo!

Nilson Barcelli disse...

Não é o bolo que é doce, é a tua história. Que é magnífica.
Escreves sempre muito bem, mas o estilo vai variando... por que será? É intencional ou sai como calha? (não me digas "seilá..."
Beijinhos.

Mateso disse...

A boneca de açúcar branco , doce ,que se segura entre os dedos ,enquanto a língua volteia nos lábios...a boneca de açúcar, memórias de infância ...pedaços doces de vida perdida algures entre o pau de canela e o gesto de protecção em alarido....A menina de boca de bombom rosado, saia de renda e soquetes.. imagens idas de tempos mais doces...
Adorei!
A tinta da tua pena pinta as cores de forma plena, depois vem o ritmo cadenciado de uma pauta de palavras.
Bj.

vida de vidro disse...

Ó mulher, só tu te lembras de juntar palavras desta forma, fazendo-nos lembrar, cheirar, degustar... Espantoso. Imperdíveis, os teus escritos. **

Jorge Castro (OrCa) disse...

Anda sempre uma cantiga em redor das tuas palavras, que tornam a sua leitura uma espécie de dança.

Escrever assim, como quem respira, faz-me voltar cá, só porque me apetece.

Beijos.

CNS disse...

Passa pelo meu canto. Tenho um desafio para ti.

Bjs

essência disse...

sei lá...

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein