- Cala-te, homem, cala-te! Pela tua saúde!
Mas ele continuava dependurado na janela agarrando entre a mão enclavinhada os dois arames onde balançavam, já secas, um par de ceroulas brancas riscadas de negro bem fino e uma camisa de flanela com rosadas florinhas. Uma camisa de noite balançando no arame mexido enquanto ele gritava na boca castanha de cigarros:
- Tirem daí a merda dos cachorros, porra! Calem esses filhos da puta que eu nem durmo com tanta guinchadela! Tu ouves-me, Gertrudes? Vou aí e mato essa cãzoada toda e ainda te mato o homem. Ouviste, Alfredo! Cabrão que devias ser com uma boazona dessas! Tu ouves, mamalhuda?
E ela por de dentro do quarto, de luz apagada, puxa-lhe a camiseta sem mangas que o Agosto vai quente. Parece até que a lua cheia ainda deita sobre a cidade restos de calma. Meia-noite e ele naquele despropósito por os cachorros ganirem. Cachorros paridos há meia dúzia de dias. A Gertrudes bem lhe tinha dito, quando passara a buscar o pão que o padeiro deixava na entrada:
- A corna da cadela não quer dar de mamar às crias. Tás vendo a porra, Adélia. Lá se me morrem os cachorros e eu que os tinha apalavrados a todos. Uma ninhada de dez cães para nada. Nem que ela pense! já fui buscar ração e vitaminas e leite. Mas a bicha não tem queda para a maternidade. Foge dos cachorros! É preciso pegar-lhe e só à força os deixa mamar. Uma merda!
E agora, madrugada de segunda feira, começo da semana de lida, estava o seu Jerónimo acordado fazendo mais barulho ao prédio do que a ninhada dos cachorros.
- Anda para dentro, homem. Cala-te, caramba! Ainda acordas o Alfredo e então é que mais ninguém dorme.
Mas de nada vale. Ele dá um estremeção na anca nua de vestes abaixo da cintura. Afasta-lhe a mão que o puxa para dentro. Que tenta. Continua gritando para o silêncio incomodado da noite em que os cachorros pedem estridentemente mama.
Jerónimo, sabe-o ela: o que ele grita por cima do silêncio da noite é outro grito que não se cala com o amainar dos cachorros.
Jerónimo debruça a camiseta branca que lhe veste o corpo magro,por cima do estendal e grita:
- Aparece, minha cabra!
E ela fica sentada na beirinha da cama que range quando mal a toca no seu jeito de sentar de lado com o corpo nu que a camisa de noite, a outra verde lisa com um laço de fita em branco, está por ali espalhada algures no escuro do quarto. A luz da lua acaricia-lhe o seio esquerdo, farto, ainda bem entumescido, mas pequeno. Ele continua a gritar pela Gertrudes em nome dos cachorros. Ela sabe. Esgueira os pés sob o lençol desfeito e deita ao comprido o corpo magro.
Na janela, o corpo de Jerónimo ensombreia o quarto da água furtada. A luz da lua faz dele uma sombra sobre a cama. Ela desiste de o calar e dorme.
Os cães nadam no lodo que ficou da maré vasa. São muitos cachorros de cabeça de fora nadando paralelos à margem. Nadando, ela percebe que não nadam, mas são arrastados pela corrente que não é água mas lama que corre com velocidade de rio deslizando. E os cães vão calados e ela vê-lhes os olhos. Muitos olhos castanhos abertos de medo. E ela na margem, olhando como se fosse salvá-los, mas o que pensa é que morram os cães da gaja que ela não os dê nem os venda. Ela está contente, mas tem pena de cada um dos cachorros a nadar, a deslizar na lama. Olha pela ramagem de sombras que se faz na noite de muita lua em que se encontra, e vê arrepiada a cadela sangrando lágrimas enquanto o leite lhe desliza dos pares de tetas pela lama. Os cachorros param de escorregar na corrente e ficam boiando a chuchar aquele caldo de leite e terra enquanto a cadela chora.
Ela rebola uma perna sobre a cama e dobra-se sobre o lado direito. Sente o vazio da cama. Não acorda. Ocupa o colchão coberto de lençóis verdes, com as pernas nuas abertas num V que lhe termina na barriga lisa um pouco abaixo do tufo acastanhado dos pelos púbicos ainda molhados de sémen. Suspira e não se sabe se porque dorme ou se da ausência dele. Se de ainda bem, se de ainda mal, se nem de um nem de outro.
No vão da escada do prédio eles frente a frente. Desvestidos. Desgrenhados. Desdormidos. Tocando-se no escuro como se fossem arrancar-se olhos. Calando uma na outra as bocas e deslizando-as mais logo nos corpos de um ao outro. Sôfregas. Quase maldosas. Lambem-se, mordem-se. Ou o que seja que se pressente, no calor da noite, cala o latir dos cachorros. Não os notaria quem por ali passasse que é muito escuro aquele recanto. Mas sentiria o quente ainda mais quente da noite. O ar covexionado de ali do fundo sentido por quem ainda descesse os dois degraus que fizeram mais prolongar a escada, antes de apanhar o pátio e abrir para a rua a porta de vidros que deixa entrar o sol e a lua.
Os cachorros mamam na cadela, apaziguada ela e eles, quem sabe se pela lua que bate em cheio sobre todos, um jorro de luz da cor do leite que sacia os cachorros. E a cadela pensava, num pensar de bicho:
- Como são lindos os filhotes. Não quero que morram. Nem aqui, nem na lama.
E eles sugavam cada um sua teta que as havia certas a cada um a sua.
Silenciava a noite। Na corda, a roupa parecia a alma de condenados em forca. E a sombra alargava-se por baixo da janela da água furtada enquanto mamavam os cachorros. Enquanto eles os dois se vingavam dos gritos dos cachorros.
Mas ele continuava dependurado na janela agarrando entre a mão enclavinhada os dois arames onde balançavam, já secas, um par de ceroulas brancas riscadas de negro bem fino e uma camisa de flanela com rosadas florinhas. Uma camisa de noite balançando no arame mexido enquanto ele gritava na boca castanha de cigarros:
- Tirem daí a merda dos cachorros, porra! Calem esses filhos da puta que eu nem durmo com tanta guinchadela! Tu ouves-me, Gertrudes? Vou aí e mato essa cãzoada toda e ainda te mato o homem. Ouviste, Alfredo! Cabrão que devias ser com uma boazona dessas! Tu ouves, mamalhuda?
E ela por de dentro do quarto, de luz apagada, puxa-lhe a camiseta sem mangas que o Agosto vai quente. Parece até que a lua cheia ainda deita sobre a cidade restos de calma. Meia-noite e ele naquele despropósito por os cachorros ganirem. Cachorros paridos há meia dúzia de dias. A Gertrudes bem lhe tinha dito, quando passara a buscar o pão que o padeiro deixava na entrada:
- A corna da cadela não quer dar de mamar às crias. Tás vendo a porra, Adélia. Lá se me morrem os cachorros e eu que os tinha apalavrados a todos. Uma ninhada de dez cães para nada. Nem que ela pense! já fui buscar ração e vitaminas e leite. Mas a bicha não tem queda para a maternidade. Foge dos cachorros! É preciso pegar-lhe e só à força os deixa mamar. Uma merda!
E agora, madrugada de segunda feira, começo da semana de lida, estava o seu Jerónimo acordado fazendo mais barulho ao prédio do que a ninhada dos cachorros.
- Anda para dentro, homem. Cala-te, caramba! Ainda acordas o Alfredo e então é que mais ninguém dorme.
Mas de nada vale. Ele dá um estremeção na anca nua de vestes abaixo da cintura. Afasta-lhe a mão que o puxa para dentro. Que tenta. Continua gritando para o silêncio incomodado da noite em que os cachorros pedem estridentemente mama.
Jerónimo, sabe-o ela: o que ele grita por cima do silêncio da noite é outro grito que não se cala com o amainar dos cachorros.
Jerónimo debruça a camiseta branca que lhe veste o corpo magro,por cima do estendal e grita:
- Aparece, minha cabra!
E ela fica sentada na beirinha da cama que range quando mal a toca no seu jeito de sentar de lado com o corpo nu que a camisa de noite, a outra verde lisa com um laço de fita em branco, está por ali espalhada algures no escuro do quarto. A luz da lua acaricia-lhe o seio esquerdo, farto, ainda bem entumescido, mas pequeno. Ele continua a gritar pela Gertrudes em nome dos cachorros. Ela sabe. Esgueira os pés sob o lençol desfeito e deita ao comprido o corpo magro.
Na janela, o corpo de Jerónimo ensombreia o quarto da água furtada. A luz da lua faz dele uma sombra sobre a cama. Ela desiste de o calar e dorme.
Os cães nadam no lodo que ficou da maré vasa. São muitos cachorros de cabeça de fora nadando paralelos à margem. Nadando, ela percebe que não nadam, mas são arrastados pela corrente que não é água mas lama que corre com velocidade de rio deslizando. E os cães vão calados e ela vê-lhes os olhos. Muitos olhos castanhos abertos de medo. E ela na margem, olhando como se fosse salvá-los, mas o que pensa é que morram os cães da gaja que ela não os dê nem os venda. Ela está contente, mas tem pena de cada um dos cachorros a nadar, a deslizar na lama. Olha pela ramagem de sombras que se faz na noite de muita lua em que se encontra, e vê arrepiada a cadela sangrando lágrimas enquanto o leite lhe desliza dos pares de tetas pela lama. Os cachorros param de escorregar na corrente e ficam boiando a chuchar aquele caldo de leite e terra enquanto a cadela chora.
Ela rebola uma perna sobre a cama e dobra-se sobre o lado direito. Sente o vazio da cama. Não acorda. Ocupa o colchão coberto de lençóis verdes, com as pernas nuas abertas num V que lhe termina na barriga lisa um pouco abaixo do tufo acastanhado dos pelos púbicos ainda molhados de sémen. Suspira e não se sabe se porque dorme ou se da ausência dele. Se de ainda bem, se de ainda mal, se nem de um nem de outro.
No vão da escada do prédio eles frente a frente. Desvestidos. Desgrenhados. Desdormidos. Tocando-se no escuro como se fossem arrancar-se olhos. Calando uma na outra as bocas e deslizando-as mais logo nos corpos de um ao outro. Sôfregas. Quase maldosas. Lambem-se, mordem-se. Ou o que seja que se pressente, no calor da noite, cala o latir dos cachorros. Não os notaria quem por ali passasse que é muito escuro aquele recanto. Mas sentiria o quente ainda mais quente da noite. O ar covexionado de ali do fundo sentido por quem ainda descesse os dois degraus que fizeram mais prolongar a escada, antes de apanhar o pátio e abrir para a rua a porta de vidros que deixa entrar o sol e a lua.
Os cachorros mamam na cadela, apaziguada ela e eles, quem sabe se pela lua que bate em cheio sobre todos, um jorro de luz da cor do leite que sacia os cachorros. E a cadela pensava, num pensar de bicho:
- Como são lindos os filhotes. Não quero que morram. Nem aqui, nem na lama.
E eles sugavam cada um sua teta que as havia certas a cada um a sua.
Silenciava a noite। Na corda, a roupa parecia a alma de condenados em forca. E a sombra alargava-se por baixo da janela da água furtada enquanto mamavam os cachorros. Enquanto eles os dois se vingavam dos gritos dos cachorros.
Alfredo dormiria esticado na cama?
Sonharia com cachorros deslizando na lama?
Sonharia com cachorros deslizando na lama?
O que importa é que não morram os cachorros.
O que importa é que era início de semana e havia lua.
15 comentários:
Escritora, faço-te uma vénia!
Uma das tuas melhores prosas, misturas erotismo, surrealismo, descrições onde se visualiza o espaço e as personagens, tudo!
Perfeito!
Quando é que procuras quem te edite estes contos?
Beijos
De ceroulas de flanela, não lhe augurava grandes noites lol!!!
Beijinho, SeiLa
Excelente! Ri-me de gosto! E parabéns pelos 3 anos do berloque!
Muitos parabéns Escritora e continua a surpreender-nos com as tuas maravilhoas "estórias":)
Beijos
... ó mulher! quantos anos é que já levas disto? um destes dias tive a fazer as minhas contas e até me assustei. É verdade que as fiz de cabeça e depois de um almoço bem regado... mas acho que contei sete anos! ou seriam cinco? Lembrar-me eu que foi aqui nos blogs que comecei a juntar as letras e a aprender os verbos... e a facilidade que eu tinha com os pronomes pessoais? era tudo "meu" e "minha"... Lembro-me que a primeira vez que te comentei, eu dava tantos erros que tu pensaste que eu era polaco! Bons tempos. Agora é só "iútubos", que até parece que esta gente não tem dinheiro para comprar uma televisão...
O post está uma maravilha, embora tenha muitos cães para o meu gosto. Bem podias salpicá-lo com uns gatitos a dar-lhe mais tempero. Por falar em tempero até me chegou aqui o cheiro da caldeirada...
Parabéns!
Muitos Parabéns por mais este aniversário (3º), numca deixe de escrever estas maravilhosa "estórias" e poemas que tanto nos alegram e satisfazem.
Beijos e Abraços do sempre amigo:
(Silvestre)
"maravilhosas"
Vim aqui por via do arion e fiquei muito contente por ter descoberto este oásis de prosa... muito boa! É que ele há tanta poesia, tanta poesia que, por mim falo, encontrar porsa de qualidade é uma satisfação!
Parabéns pelo aniversário, é verdade!
Voltarei
já tou a ver de que vai ser a próxima caldeirada.
- palavras bem arrumas, fazendo imagens -
;)
n te preocupes. continua é a escrever assim.
Eu já comentei aqui :( o que é que eu fiz de mal? Dei-te os parabéns. Guadei a história, aliás tenho que te tirar daqui mais algumas para a minha colecção :)
Deixo-te um beijinho grande e gordo. Espero ver-te por cá muito tempo com estas histórias que por vezes me fazem ir até outro mundo e outras me puxam para este. tens aessa capacidade.
Mais beijinhos
Por indicação do Arion, passo por aqui. Com muito agrado descubro uma escritora cheia de interesse! :)
Voltarei para me deliciar com as histórias...
Um beijinho da Ana Paula.
Assim a modos feminino luso do corleoni F. Felini. Acho...
Gostei mesmo!
Abraços!
Ainda bem que comentou no Valkirio. Não conhecia os seus blogs e fiquei encantado com a literatura!
Fez muito bem ao assinar a petição do Ritornello e disponibilizá-la aqui.
Obrigado.
Voltarei.
Não sei onde deixar esta nota, se não a achares conveniente apaga-a.
Vou descansar uns dias, estou a precisar mesmo. Vão ser umas mini-mini-mini férias mas espero quando voltar já ter aqui montes de histórias para ler :) Deixo um beijinho grande, estes dias vou estar mais perto de ti :)
Enviar um comentário