quarta-feira, 16 de maio de 2007

a batata

Amanheci dentro da caixa das batatas.
Uma caixa de madeira em ripas mal aparadas que tenho no armário que serve de arrumo. Um vão aproveitado por baixo da escada que dá acesso aos quartos.
Dentro da caixa, eu, muito acomodada, as pernas encolhidas e o braço direito sob a cabeça. Eu deitada de lado.
Pareço um feto assim enroladita entre os tubérculos de cor acastanhada.
Cor de batatas novas trazidas por uma amiga do terreno do pai. Uma courela onde ele as semeia com esmero para sua entretenha, mas que sempre sobejam. E ele nem as vende. Distribui pelos filhos e por poucos amigos que estão mais por perto. Já pensou, segundo a filha, dar aos pobres da vila, mas diz ele que prefere fazer um bem que lhe fique sem lembranças.
E tem razão o homem. Não me lembraria dele. E se o lembro, é só pelo insólito do sítio em que acordei. Coberta das batatas ainda rameladas de terra seca e eu amanhecendo entre elas.
Que raio me havia de acontecer!
A porta da dispensa está fechada. Fechei-a, eu sei.
Fechei-a por receio do cão pois que pendurei, na noite anterior a este acordar, umas quantas chouriças e um pedaço de presunto, numa corda mesmo sobre a caixa com as batatas.
Fechei, tenho a certeza.
Fechei a porta e agora não sei como é que saio.
Remexo-me e um monte de batatas cai, rebolando, sobre a minha testa. Depositam-se duas na cova que faço entre a cabeça, do lado da orelha esquerda, e o ombro.
Cheiram a terra e, de um modo menos intenso, cheira-me ao presunto que está dependurado a não mais que um meio braço da minha perna esquerda. Se erguer a perna, estou certa que bato com a ponta do dedo grande na extremidade do pedaço de carne. Mas estou tão sonolenta que nem sei se me mexo ou se apenas penso. De qualquer modo, terei que resolver este acordar estranho, ainda mais sentindo o grande incómodo de ter a coxa direita toda assente sobre várias dessas coisas redondas que costumo assar no forno enroladas em papel de alumínio e fazer depois um festim derramando-lhes por cima um bom molho. Mas agora, detesto estas coisas incómodas, e dormir com elas é do outro mundo. Que eu não sei se dormi aqui. Lá que estou acordando, isso não duvido, mas dormir a noite inteira não é possível pois que me lembro de ter lido uma dúzia de páginas daquele livro de contos deitada no meio da cama e com o lençol de barra bordada de vermelho dobrado sobre o edredão com uma capa de flores no mesmo tom.
Então, como terei vindo aqui parar?
Vou-me levantar.
Ai pois sim! lá pensar que me levanto eu penso, mas não me desloco nem um pedacinho.
Pronto. Percebi. Estou presa nalgum pesadelo e vou esperar que me acorde. Entretanto, deixa cá ver se oiço o cão a me procurar.
Meu Deus! O que oiço são vozes!
Gente que fala ali na cozinha onde fica o vão de escada feito arrecadação.
Gente na minha casa, como? Quem?!
E este pé nem se mexe! E onde tenho eu o pé direito? Não o sinto!
Mas estou acordada. Vejo perfeitamente os dez chouriços dependurados e até os conto! Um, dois, três…São dez, não duvido.
E oiço. Oiço bem esta voz que decide:
- Podes trazer a roupa da cama. Ontem deixei cair tinta no edredão vermelho. Esta minha mania de desenhar na cama. Põe o tira nódoas antes de meter na máquina. E, quando puderes, vai aqui à dispensa e tira uma meia dúzia de batatas novas e faz uma sopa. Podes colocar um bocado de presunto.
E a voz de mulher acrescenta:
- Eu volto pelas seis. Até logo.
E deve ter olhado para alguma coisa que lhe disse do tempo que era. Talvez para o relógio do micro ondas. Não. Para esse não, que está sempre nos zeros. Talvez para o de pulso que ela o tenha. O certo é que ainda a oiço, esganiçada, dizer:
- Estou atrasada, bolas!
E oiço os saltos, que devem ser altos e pontudos, batendo na tijoleira do chão dirigindo-se para o fundo, para o lado da sala, para a porta da rua.
Mas quem é ela? e a quem fala?! Seria a conversa com a minha Maria?! Aquele doce de criada?!
E eu, deitada na caixa das batatas ainda cheias de terra da apanha, a ouvir e nem sinto que seja estranho. Quero eu dizer, estranho sim, mas parece que nem é bem comigo.
Eu nem sei se o estranho é, afinal, que foi sonho meu o tal de edredão vermelho e mais as doze páginas do livro.
Ou será que estranho, mesmo muito estranho, seja eu perceber?!

Olho com muita atenção para este bocado de terra castanha que me cai da testa sobre um olho, enquanto me encandeio com a luz que vem de fora na porta que se abriu.
A mão apanha todas as que me estão em volta e joga para o fundo da caixa as duas que se aninharam no meu ombro.
Dirige-se para mim como se fora um polvo gigante.
Rosada, cheia de anéis e uma pulseira que tilinta e me bate nas costas quando me agarra entre outras duas.
Fico um instante entalada nos dedos que cheiram a água de rosas.
Depois, caio desamparada no azul de plástico do alguidar.

(Antes de a faca começar o seu serviço, vejo o meu cão que dorme sob a bancada.)

8 comentários:

wind disse...

Gargalhadas Escritora, delicioso conto surrealista.)))
Adorei!:)
Sempre com todos os pormenores descritos e muito humor desta vez:)
Beijos

éf disse...

se isso continuasse a batata passaria pela boca que a conta, a dela própria.

Alberto Oliveira disse...

... ou essa caixa de batatas é enormíssima ou tu és muito, muito pequenina. E depois essa esperteza de (mesmo num sonho ou pesadelo?!) estar atenta aos enchidos. Cá para mim, tu tens é uma mercearia e adormeceste a inventariar os produtos da loja. Se não te importas, acorda e dá-me três quilos de cebolas, um pacote de açúcar e uma margarina vaqueiro. Vá lá que tenho pressa...

Gi disse...

Verdadeiramente surreal.

Bem a meu gosto, deliciei-me com cada linha desse mundo paralelo que tu criaste. Que sabe o presunto não é um admirador secreto que aguarda o momento "enfim juntos"? :)

Beijinhos.

O Legível é homem né?

Pois, tira o romantismo todo à coisa, o malvado.
lol

Noite feliz, fizeste a minha noite assim também

Nilson Barcelli disse...

Já vi que emparelhamos (não sei se pela lógica de batata) na mesma onda de surrealismo.
Mas tu numa prosa que dá gosto ler.
Bom fim-de-semana.
Beijos.

Alberto Oliveira disse...

Com permissão da minha amiga Seila


Para gi:

Sou. E malvado também. Mas o que eu gosto mesmo é de sorrir... que a vida está cada vez mais absurdamente sisuda.

Alexandre disse...

Até fiquei com pena da batata, e logo eu que adoro batatas... acho que nunca mais as vou comer... pelo menos hoje!!!

Excelente texto, bem ao jeito da minha leitura preferida! Gostei do teu blog. Obrigado pela tua passagem pelo meu! Bom resto de fim-de-semana!
Tenho novo post!!! Beijinhos!!!

Gi disse...

Seilá, obrigada por fazeres de caixa de correio lol. Já lá fui visitar o "malvado", estava a precisar de me rir um bocadinho e já consegui. Beijinhos "abatatados"

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

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"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein