domingo, 21 de janeiro de 2007

Margaridas



Vinte de Janeiro de dois mil e sete. Doze horas e dezoito minutos. Pastece um sol que já tentou ser quente, mas ensombreou de uma neblina contínua que desazula o céu. Neste dia de Inverno queria escrever daquilo que penso, que deslizassem meus dedos em ajuntares de letras, formulando na palavra o que em mim é pensamento. Soltam-se pedaços, estilhaçadas formas.

Mulheres compõem um painel de desbotadas vestes, enroladas saias, desalinhadas melenas, meias sem cinto ligas, sem ligas, pés deslizados de dentro, saias jogadas em chão de pedra, em alcatifa, sempre em lugares frios, desconhecidos, silenciosos. Lugares sem nome, a direcção escrita em papelinho de amiga, dama de loja, segredo de vizinha de outra vizinha. Lugar que se esquece.
Mulheres sem coloridos que mais que sangues derramados entre pernas, avermelhando toalhas adivinhadas brancas antes do empapo nos coalhos vertidos de cada uma, muitas, dessas todas mulheres que meu pensar olha nesta hora deste dia deste mês deste dealbar de um ano que é século muito andado.
Mulheres apenas. Só fêmeas nesta manhã de um Janeiro Inverno, desliza o meu pensar. Uma me surge em plano que lhe converso o rosto e, mais um passo, porei a minha mão na dela que crispa no que parece de dolorido fazer em vez de grito.
Chama-se Margarida. Fez anos no passado Dezembro. Menos que trinta. É de um cabelo negro de azeviche como é uso dizer-se de cabelos assim asa de corvo caído pelas costas até um pouco abaixo da linha do branquíssimo pescoço. A meu descuidado e vergonhoso olhar, expõe o púbico pelo e todo o interior dos vaginais lugares por posição em que se encontra. Expurga. Pedaços das entranhas, caem-lhe entre as nádegas como se fora uma romã esmagada. Olho-a deste local do pensar donde nem posso cuidar-lhe o suor que lhe cobre o rosto.
Margarida. Jorra-lhe do ventre uma pasta mole. Escorre vermelho de um sangue morto e a mão crispada que suportava a dor, desfez-se numa mão em forma de um quase adeus.
Margarida numa enxerga, numa marquesa de enfermeira, num quarto de hotel, em cama mal mudada da que ali antes foi deitada. Margarida num prédio. Subiu pela escada, no elevador. Bateu na porta e entrou pela metade da metade que se abriu e nem viu gente que não há claridade e ficou sentada no lugar onde uma mão indicou e o coração andou-lhe demasiado e nem viu cada cara que lhe estava em redor, olhos sem fundo de gentes sem endereço, sem papéis, sem nome, sem caixa de previdência ou outra. Margarida e outras sem mais que um preço. Isto, ela só sabe mais tarde, mas eu, vou contando adiantado.
São no prédio muitas outras Margaridas e Mónicas, Filipas, Felisminas, Gabrielas, Eugénias, Beneditas e tantas, muitas outras de nomes invulgares em África, Pirinéus, Malásia. Decerto, uma Marília se não naquela numa outra sala ali por perto, e todas vão sentir as entranhas a dizerem que sim e as paredes meio sujas ou brilhantes a gritarem pecou e, já na rua, o silêncio, a socapa do local onde andou, do que lhe doeu ou custou. Solidão, medo, pecado.
Mulheres que abortam do corpo o que do corpo não desejam seu.
Margarida deslizando descalça na praia de areia fria, os cabelos muito negros rendilhando o sol do meu Janeiro quase de sol tapado que se abriu em luz de céu azul para que Margarida agradeça à Vida a liberdade do corpo e o crescer doando Vida quando lho fizer dessa ser seu bem-querer.
Margarida ou Luísa ou Donatila ou Teresa ou Dolores ou Lurdes ou uma qualquer que seja, uma Mulher erguendo a Vida no seu colo há-de sempre ser o hino da sua Vida doada.

Gustave Klimt

5 comentários:

Alberto Oliveira disse...

... se há textos no feminino este é um deles. Daqueles que um homem entra num cenário que não foi "feito à sua medida".
Mas creio que o homem cada vez mais, se deve aproximar destas estórias verídicas, conhecer-lhe os contornos, participar nas responsabilidades e sobretudo não julgar sem conhecimento de causa.
Para que a "inquisição" não regresse um dia destes...

wind disse...

Escritora, magnífica prosa metafórica sobre o aborto.
Doeu ler, sente-se cada palavra tua!
beijos

BlueShell disse...

Comovi-me ao ler.
Sabes? Nunca pude ter filhos...e sempre os desejei..muito!
Não o quis a Sorte, o Destino...sei lá!!!
Hoje é mais um dia triste. Há 2 anos atrás perdi o meu pai…a saudade e a dor são avassaladoras…
De dia para dia vou ficando mais só!Um dia...não terei ninguém...estarei só comigo mesma! Já perdi tanto nesta vida....
BShell

augustoM disse...

Uma forma de apresentar a razão, mas a razão não a mesma que a minha, muito mais está em "jogo" do que posse e querer. Também irei publicar um post sobre o assunto, sem condenações nem falsos moralismos como se ouvem todos os dias, mas unica e simplesmente baseado na ideia de Vida.
Um abraço. Augusto

Gi disse...

Seila,
Vim agradecer as visitas e o destaque dado no seu "consultas" muito, mas muito obrigada. Tenha um resto de bom fim-de-semana e quando lá voltar, Chame-me ! :o)
beijinho

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein