Hoje

Hoje, deu-me saudade. Dos teus anseios (inúteis dizia eu, recordas?) Das tuas preces de mãos postas. Dos teus escritos noite fora em qualquer papel (lembras-te que escrevias mesmo em papel de merceeira? papel pardo de grão espalhado um aqui mais de preto, ali outro rosado) Escrevias noite dentro e eu dormindo de teu corpo sonhado (lembras como me chamavas José, e eu te ouvia?)
Saudades disso e do teu correr, que mais do que andar depressa não corrias, mas pensavas e eu te acreditava veloz, na extensa praia ainda o sol aquecia no fim de uma tarde de Inverno, ou em dia de Verão ao meio do dia.
Essa saudade e ainda a outra, do tempo em que ficavas passando ponto na minha camisa e a sala se ecoava do rádio que tocava a música do mundo (o mundo que te andava sempre longe, lembras-te?)
Hoje, os teus anseios, entendo. Deixar em cada canto o teu olhar de verde e morrer olhando algum outro algures, algum outro tu. Anseios que levaste naquele dia e eu lembro de saudade inteiro, hoje que faz um sol de Inverno e cai sobre a cidade, ao longe, uma neblina leve (chamavas a isso o suor do mundo, lembras?).
Tinhas as mãos colocadas sobre o ventre liso, sentada no vão da janela de onde vias o que chamavas horta e mais nunca fora que um canteiro de ervas e três pés de couve que os caracóis, antes de ti, comiam (sim, eu sei, tinhas semeado tomate e de uma rama de um tom de amarelo, nasceu, num dia de Novembro, um exemplar polpudo e vermelho.)
Dormia-te no colo o gato. O mesmo que cabeceava o teu deambular pela casa quando olhavas lombadas de livros que espalharas por mais prateleiras que paredes. O gato quase azul de preto, com olhos cor de um mar ou de campina, que podia ser de musgo ou de uma espécie de algas. Olhos que se assemelhavam na cor aos que tinhas quando, noite dentro, acordavas e de mansinho dizias José e me chamavas.
Hoje deu-me este alembrar de um quando tu me eras e ficou-me esta dor de saudade. Num dia de Janeiro, sentada que estavas na janela, fui eu que te chamei do nome que me era acostumado quando apenas me ouviam tu e os animais da casa que além do gato de olhos verde lago ou musgo ou alga, havia um cão que dizias de guarda. Um cão que trouxeste de abandonado num dia de Inverno em que caíra geada. (lembras-te que dormiste com ele muito enrolada e lhe deste biscoitos desfeitos em leite?).
Hoje, relembro como te encontrei sem ler, sem nada. Nem o lápis que tanto te encantava no risco da blusa que depois bordavas em linhas de brilho, vermelhas, amarelas, lilases, rosadas.
Fico com frio sob este sol que bate na berma do quintal a que chamavas horta e onde ainda crescem folhas nos três pés de couve.
Tenho muitas saudades. Tantas saudades. Hoje.