sexta-feira, 18 de agosto de 2006

Linhas que se entrelaçam

E era nos dias em que o tempo parecia não parar de correr dentro dela numa batida síncrona de esmagar grão ou de malho batendo ferro rubro. Era nesses dias, manhãs ou tardes, raro serem noites, mas: era nesses dias que lhe doía a dor que dizem ser dor de alma e assim ela lhe chamava, quando nisso reflectia e era dada em fazê-lo. Dor na alma, pois que não havia local no corpo que lhe doesse, antes era um entranhar do eu num vazio redondo, quente e frio, que nem ela sabia porque, ou como, se conseguia, depois desses dias, ainda ter um eu a que se referir em vez de ficar totalmente corpo, totalmente vazia. Era desses dias que ela trazia a terra mole que parecia mais uma pasta de gordura meio fundida, alastrando pelas mãos quando escrevia e fluía uma frase, um parágrafo inteiro, por vezes um conto, mais raro, uma poesia.
Amargos dias.
O tempo, um desnorte que em ritmo nada se lhe apontava, e ela a ficar olhando alguma coisa que nunca fora: olhando o que ela pensava que tinha sido. Assim mesmo, pois que não podia, não sabia saber como fora – ninguém pode dizer, mesmo pensar, como foi.
Tristes esses dias.
Final de dia, e restarem nadas; um deixar correr o presente. Deixar o presente esvair-se em passado e nem arrimar um futuro.
Tristes esses dias em que o tempo corria e a mantilha dela nem se movia. Não havia um passo, um andar, um mover os braços, um desejar.
Não havia nada(?)
Nem morte que é um prelúdio de um outro futuro e um hino a ter vivido.
Nada(?)
Como se via a ela nesses dias, a gente não sabe, mas: e sabe porque se postava ela nessa letargia parcedendo-nos zangada com a vida?
Poderemos explanar das razões de assim se ficar alguém?
Seriam, nela, tristes e amargos esses dias?

Matisse

Eu não sei nada.
Eu disse que o tempo corria em batida síncrona e ao tal de síncrono, lembro de um conto que creio ter ela trazido de um de lá em um de esses dias. Aqui o recordo.

O baloiço

Oscilava lenta como se descansasse a cabeça numa almofada. A saia, rodada e comprida, roçava a relva mal tratada. No local em que encostava a cabeça à mão, a corda que segurava estava desfiada. Era meio-dia mas a sombra da nogueira refrescava o quente daquele Julho. Estava imersa numa bolsa de paz de um estranho contentamento. A ponta de um ramo bateu-lhe no braço. Sorriu olhando o risco leve avermelhando a pele rosada
O baloiço dependurara-o o pai no ramo da nogueira. Bem se lembrava de como era a tarde em que ele, balançando corda e tábua nas mãos muito magras, se dirigira ao fundo jardim.
Era o começo da Primavera e a mãe estava mergulhada num daqueles seus torpores que lhe perdiam os olhos de azul em céus que ela, pequenina, desconhecia. Bem passava o seu corpinho de menina diante daquele mar profundo que eram os olhos de sua mãe. Bem lhe acenava e falava encostada no regaço sempre coberto por uma manta de felpa rosa com uma ponta descosida. A mãe ficava bem para lá do local em que se encontravam, o olhar vagueando muito longe e era ela que se sentia perdida.
Nessa tarde, o pai caminhando a fazer-lhe o baloiço, acenou-lhe que viesse, com aquela mão direita que tinha uma unha grande com que tocava bandolim; pensava ela, que tocava para chamar a mãe de lá desse mar fundo que era onde, ele se calhar também assim pensava, a mãe andaria.
Montaram o baloiço. O pai sentou-a entre os dois nós que seguravam a tábua muito lisa às cordas que as suas mãos pequeninas mal abarcavam tal eram grossas ou como tal lhe pareciam.
Depois, baloiçou muito quieta, enquanto o pai empurrava com um toque suave nas costas, apenas um não deixar ir mais acima, apenas um segurar mais do que empurrar. Empurrar seria mais tarde quando levava os amigos da escola sempre às escondidas da mãe, sempre sem fazer ruído.
Este fora o montar do baloiço onde hoje se sentava muito serena, quase dormitando, sentindo os odores fortes do jardim à luz intensa do meio do dia.
E lembrou o outro dia. Brincando com as recordações, avolumou o acessório, esquivando-se a recordar esse dia em que vestia uns calções brancos com um folho largo em bordado e, por cima da camisola de algodão listrado a branco e rosado, atada nas mangas por duas fitinhas encarnadas, o bibe borrado de tinta azul, o bibe da escola. Parecia um anjo esvoaçando no jardim. O baloiço riscava o ar quente da tarde deixando, sobre o fundo laranja do horizonte, um traço branco e doirado. Os sapatos de tiras brancas revestidos por soquetes rendados, quase tocavam o chão quando os joelhos se dobravam, deslocando-se o corpo sobre o relvado num retornar ao cimo onde as pernas descobertas se estiravam e os caracóis se soltavam no ar, tão de oiro que, em lhe batendo forte a luz do sol, chispavam tons de esverdeado.
O baloiço ia no ponto mais alto, tão lá em cima que podia ver o vermelho do telhado da casa acabado de limpar. Nesse ponto, em que o corpo se esticava para trás num ângulo muito tendente a zero com o chão lá em baixo, ouviu o grito como até hoje o ouve nos dias em que o enjoo lhe vem tal como lhe ficou naquela tarde. Um grito que movimentou todo o jardim, colocou o baloiço na vertical enquanto o seu corpo se desfazia como se todo o jardim andasse em volta a uma velocidade que o corpo não suportava. Vomitou o relvado desde o baloiço até ao local onde o grito ressoava vindo de outro mundo, ela acreditava.
Aquele vómito, estaria ele há muito entupindo-lhe as entranhas quando observava os mares imensos nos olhos da mãe nas infindáveis tardes em que a pedia para si.

Nunca mais se sentara no baloiço. Nunca mais se sentara num baloiço até hoje em que sabia que o grito nunca mais voltaria a ouvir-se. Nunca mais.


É. E eu imagino-a pousando a caneta ao lado do bloco de papel em que costuma escrever. Imagino-a sorrindo às duas elas que trouxe de um tempo que não sei se é um passado ou se nem existe ou se uma das outras recria, sem tempo, o que ela anseia.
Poderei dizer que se ela fica dependurada entre passado e futuro, é por sua vontade, por enjoar o viver da gente?

Não sei eu nada.
Sei que as linhas se entrelaçam, mais baloiço menos baloiço, e que sempre um dia haverá serenidade.

8 comentários:

wind disse...

Ó escritora estes teus contos cruzados apertam-me o peito de tão belos, profundos, emocionantes e reais que são.
Chego a vivê-los!
E mais não digo:)
beijos

Nilson Barcelli disse...

Um belíssimo conto, com outro conto no meio.
A Wind já te chamou escritora. Eu também.
Até agora tens a unanimidade dos teus leitores.
Beijinhos.

Alberto Oliveira disse...

Se queres que te diga, também não sei em que tempo-suspenso ela decidiu viver no vazio. Até porque cheguei agora de férias e só a partir deste momento estou a começar a pôr as notícias em dia...


("Já cá faltava este!", parece que te estou a ouvir... )

lobices disse...

...obrigado pela visita
...beijinhos

Licínia Quitério disse...

Um cumprimento especial. Que escrita desta merece vénia. Parabéns.

éf disse...

mas que comentário preocupante no meu blogue
bahahahaha...

Resposta: "sei que as linhas se entrelaçam, mais baloiço menos baloiço, e que sempre um dia haverá serenidade"... mas antes, a folia.

;D

éf disse...

Resposta ao comentário de preocupação deixado no meu blog: "Sei que as linhas se entrelaçam, mais baloiço menos baloiço, e que sempre um dia haverá serenidade"...mas antes, a folia.

;D

mjm disse...

"morte é um prelúdio de um outro futuro e um hino a ter vivido"

!!!!!

Claro q me dispensas de me repetir qt à tua escrita e aos efeitos q ela tem em mim... mas este ACHADO!?

«Gostas de quê, mj?
...e noutra linha: de Mia Couto, Seila...
Na mesma ordem?
Na mesma ordem.»

;-)

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein