sábado, 24 de junho de 2006

som

O som atravessou o corredor e, muito reflectido nas paredes decoradas a gesso num rendilhado verde no rodapé, entrou na cozinha onde o lume aquecia odores em panelas de ferro enegrecido. Um avental branco de laço engomado sobre um vestido azul, torneou um olhar de igual azul de fronte do fogão para o mirar interrogativo da porta de onde se fizera o som que reverberava no ar quente da cozinha. Maria Ofélia colocou na bancada o garfo de ferro que há pouco autenticara o cozido da galinha, e em passos lentos, como quem vai pensando no quem será sem se obter resposta, foi corredor adiante deixando mudas, à sua passagem, cada porta de cada um dos quartos que ali desembocava. Quedou-se uns segundos no átrio até dar a si mesma o tempo de inquirir, agora de se ouvir: “quem é?” Um balbuciado em resposta em nada a elucidou sobre quem poderia estar do outro lado, na hora de quase meio-dia, num dia de chuva e temporal, com uma voz que parecia não alcançar nem o início do corredor. A chuva fez-se ouvir mais forte e um clarão acentuou os verdes, vermelhos e amarelos dos vitrais que ladeavam cada uma das portadas. Maria Ofélia abriu devagar o fecho doirado que substituíra, há uns anos, a antiga tranca. Um breve instante, e Maria Ofélia apercebia o homem caído no degrau luzidio de muitos andados.
Seria o instante para fazer menção de fechar depois de dizer o que na sua cabeça seria tão claro como se já fora dito:” vá tocar nas traseiras que lhe darei uma sopa e secarei as roupas; agora, com sua licença.” E fecharia a porta e atravessaria o corredor lamentando tê-lo atravessado, mas pedindo perdão que meu deus há tanto pobre por aí nestes dias de temporal, coitados, mas e o almoço que hoje há visitas e eu estou sozinha.
Maria Ofélia não chegou a pronunciar uma só sílaba, nem retornou, corredor a fora, nem se lamentou, quase rezando. Maria Ofélia nem chegou a desdobrar, da posição em que a havia deslocado, uma portada de sobre a outra.
Calou o grito que lhe distendeu o corpo num forte estremecer. O seu menino ali tombado num charco de vermelho. Maria Ofélia pressentiu-lhe o sem vida. Abraçou-o numa carícia impulsiva, desordenada. Muito antes de chegarem os doutores, muito antes do resto, ela ficou um instante, só um instante, afagando.

Não lhe notaram uma lágrima, uma ruga mais, um torcer de mãos. Maria Ofélia diferia no seu dia a dia de anos de labuta naquela casa, apenas no trajar de negro. Muito negro.
Ninguém lhe deu as condolências. Ninguém a consolou de mão no ombro.
Insistiram que ficasse na primeira fila. Não aceitou.
Levou um pé florido da sardinheira velha. Enterrou-o, muito vermelho, na terra revolvida.

(Nunca soube se algum dia o seu menino a adivinhara, a ela, a criada Maria Ofélia. Não, decerto que não. Mesmo ela, tantas vezes, se deslembrava que nela e só nela fora que o cordão se cortara.)

Modigliani

11 comentários:

wind disse...

Cristo, escritora que até me arrepiei.
Entrei tão dentro da tua "estória" que parece que era eu a Ofélia.
Genialmente bem escrito, a passares tudo para vermos, semtirmos, emocionarmo-nos.
beijos

ND disse...

Muito cinematográfico e bonito pela forma hábil de transmitir um cenário, acção e sentir através das cores, sons e odores. E é muito vivo, não nos provoca (a mim pelo menos) o lamento, a condolência, mas o respeito. Isso é bonito. :)

lique disse...

Começo a achar que tu não escreves, tu pintas um quadro. Mas um quadro com sons e cheiros.
É sempre uma surpresa e uma emoção ler-te.
Beijão

éf disse...

"Começo a achar que tu não escreves"..."Muito cinematográfico"

tá tudo dito!

Alberto Oliveira disse...

Gostei do modo como Ofélia se desloca da cozinha até à porta da rua. É um percurso em que se pode começar a adivinhar um drama; mas em suspense, sem abrir o jogo. O temporal é o elemento de ligação que antecede a revelação do corpo caido no exterior. Boa!

abraço.

Anónimo disse...

Para não variar, gostei muito. E para não repetir o que já foi dito, concordo com o Legível.

augustoM disse...

Um suspence trágico bem conseguido.
Também gostei do fecho com o cordão umbical, muito bem metido.
Um abraço. Augusto

Licínia Quitério disse...

Bem escrito. Bem descrito. Com um tempo de acção bem escolhido. De quem tem todo o prazer na escrita.
Beijinhos.
Licínia

O Micróbio II disse...

Adoro Modigliani...

Armindo de Jesus disse...

quem sois vos?

Anónimo disse...

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meu honroso quarto lugar

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ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein