sábado, 10 de junho de 2006

fotografias

Levava na mala as fotos. Pedira que revelassem o rolo em papel. Apetecia-me passá-las uma a uma pelas mãos, sentir que renovava o andar por lá onde andara. Queria ver as fotografias sentada numa esplanada a saborear o sol de Outono que brilhava discreto. Não levava outra coisa no pensamento. As pessoas passavam por mim, quase correndo, num e noutro sentido. Era fim de tarde. Alguns transeuntes teriam saído do emprego e apressavam-se a apanhar transporte. Eu andava, em passo curto, saltitante, quase sem pressas, mas desejando saciar, rápido, a vontade de beber um chá quente enquanto via as fotos.
Sentada num muro baixo que fazia parte de estrutura de prédio, uma mulher estendia a mão. Coloquei uma moeda na palma muito branca. Fi-lo com rapidez, sem mesmo me parar, mas senti o sorriso de menina, um sorriso onde enquadrei a brancura da mão. Dei um, dois, menos que dois passos, e já a esquecera, já só pensava nas fotografias.
A esplanada estava sob o meu olhar. Via as cadeiras de metal prateado com almofadas em tons de laranja e castanho, o empregado que sempre me servia andando num vaivém, as mesas no centro de cada quatro cadeiras, cada uma ocupada por uma pessoa. A esplanada cheia de gentes. Dei por mim a recear não ter uma mesa onde espalhar as fotografias e apressei o passo. Estava quase no local desejado.
Era assim num fim de tarde sem sobressaltos, sem preocupações que não fosse rever as fotos tiradas nos confins de África, onde dois Oceanos se abraçam.
Era assim, quando a esplanada desapareceu num rolo de fumo e pedras e mesas e gente correndo e gente gritando. A esplanada, uma fogueira iluminando rostos e corpos no lugar em que me pensara beberricando um chá, reclinada sobre as fotografias espalhadas na mesa.
Por um instante, fiquei paralisada na berma do passeio. E foi o instante em que vi a mulher da mão estendida, mão onde eu depositara a moeda.
Cruzamos os olhos quando ela entrava num carro que partiu veloz.
Não era de menina o sorriso com que me olhou. Por um instante. Só por um instante.
Marc Chagall

9 comentários:

wind disse...

Cristo, assustador! Escritora é assim mesmo na realidade o que descreveste.
Da aparente paz surge o terror de onde menos se espera.
Muito bem escrito, com o suporte das fotografias:) beijos

Isaac disse...

Como sempre... Magnífico!

Licínia Quitério disse...

Realidade ou ficção? Que interessa? Sedução conseguida.
Beijinhos.
Licínia

BlueShell disse...

Choro em silêncio…
Parece que nada é pior do que chorar em silêncio (nunca me tinha apercebido….)
BShell

Ilusões-Óptimas disse...

Interessante.

augustoM disse...

O terror esconde-se onde menos se espera, se assim não fosse, podiamos evitar.
Um abraço. Augusto

gato_escaldado disse...

segui suspenso as tuas palavras, suspenso. o final explodiu como uma bala no interior do cérebro. muito bem escrito. beijos

Anónimo disse...

Nunca se pode acreditar em tudo aquilo que se lê, a fotografia estava presente, mas a realidade da escrita à medida que avançava, mostrava outra bem diferente, porque nem tudo o que parece o é... Agora a forma envolvente da descrição está sublime, gostei de sentir o choque do final; só aqueles que sabem agarrar o leitor até ao fim, o sabem fazer.

Beijos

Alberto Oliveira disse...

... o homem deposita o terror nas mãos de quem menos?! se espera. É uma arma que vem de tempos imemoriais e que não poupa ninguém. Diz-se, de tal arma, que é a última forma de resolver os problemas dos mais injustiçados.

O homem, que continua a ser "o pior inimigo de si mesmo", cada vez argumenta pior em paralelo com a sua evolução intelectual.

Bom fim de semana.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

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ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein