sexta-feira, 12 de maio de 2006

escrever

Desencorpado. Foi essa a palavra que fixou. O resto parece ter-se passado numa dimensão em que apenas vagueou ouvindo de muito longe vendo de um outro lado de si daquele seu eu que ficara sentado de pernas muito cruzadas nas meias cor de vinho por debaixo da saia muito mesclada muito rodada. Ouvia palavras da boca em que o lábio superior se deslocava para dentro e para fora tapando e destapando o lábio inferior em gestos húmidos contornados a vermelho de um sangue que ela sentia que lhe faltara quando o molho de folhas colocado sobre a mesa de tampo de vidro translúcido foi batido com a mão de unhas longas da cor da tinta dos lábios que diziam a palavra. Desencorpado.
(...)
Havia um armário de madeira escura com duas portas de vidros pequenos distribuídos na esquadria das suas portas. Um armário carregado de livros de capas grossas e outras esfolhadas, rasgadas mesmo, de muitos desfolhares – dias e dias a abrir o armário, a escolher um livro, a fechar o armário, a ouvir tilintar o vidro; a sentares-te em frente do armário no cadeirão, as pernas enroladas e a mão no queixo; lendo tardes inteiras; lendo até que o sol não enviasse mais luz através da cortina esvoaçante quando eram as tardes de Verão.
Anos depois, havia uma mesa num canto da sala enorme envidraçada sobre as torres e o rio correndo a muitos andares abaixo; e sobre a mesa havia folhas; e folhas manuscritas a azul; e outras dactilografadas com muitos escritos na margem e setas e asteriscos em vermelho e a mesa ficava sem tampo que não o de maços e maços de folhas e a máquina de escrever; a Olympus levada para o quarto nas noites que seriam de espera e intermináveis mas se resolviam em escrita e mais escrita, folhas e folhas de papel desfeito sobre a cama e o tapete e o chão e levadas nos amanheceres tardios em resmas desarrumadas para a mesa que ficava no canto da sala grande onde escrevias tardes a fio até que a luz do sol deixasse o rio em negro e as torres iluminadas em luzinhas estonteantes de coloridos.
Depois viste a boca vermelha e as unhas de igual cor carimbando o texto de tua escrita dita assim. Desencorpada.
(...)
Na rua a chuva caía abundante. Deslizava como cascata nas vidraças lá muito do alto das torres da cidade. Borrava manuscritos. Amolecia papéis dactilografados. Não os papéis que tinhas muito abafados na tua pasta impermeável.
Sentaste-te na pastelaria que te pareceu melhor acolher o sentimento que te pairava sem ter sido ainda determinado, enquanto sentimento, se de amor ódio ou desprezo ou indiferença. Entretanto, pediste um chá quente e uma daquelas argolas cobertas de doce de cereja. Olhaste a rua e as gentes e sentiste a espiral a enrolar-se pelo corpo dizendo-te que nem era amor, nem ódio, nem indiferença ou mesmo desprezo. O sentimento que te fez chorar até ao momento em que o chá te foi servido com o bolinho de doce de cereja, era uma enorme tristeza, uma solidão. Tristeza e solidão guardadas entre as folhas dos livros no armário das tardes dos longínquos Verões, embebidas em cada folha manuscrita ou dactilografada.
Limpaste os olhos e bebeste o chá devagar, como devagar foste trincando o bolinho de doce de cereja.
No guardanapo escreveste. Recomeçar.
Dobraste o guardanapo e guardaste-o na pasta entre as folhas do manuscrito. Acabaste o chá.
Devagar, reabriste a pasta e retiraste o guardanapo. Escreveste em letras muito grandes. Alegria. Amor.
(...)
Hoje é um domingo de Maio, caminhas junto à praia e trazes apertado ao peito o teu encorpado recomeço de alegria e amor.

Pablo Picasso, mulher com livro

8 comentários:

Anónimo disse...

Fiquei exausto com o primeiro parágrafo. Mas descansei nas reticências (devem ser a área de serviço desta auto-estrada literária). Em suma, uma escrita ENCORPADA.
A imagem do Picasso era desnecessária pois o texto já transmite imagens, e muito bem.
;)
Gostei.

wind disse...

Vi e senti tudo o que está na prosa. Excelente!:) beijos

Marco Aurélio disse...

Você já viu um fractal?

Um abraço

Marco Aurélio

Alberto Oliveira disse...

... escrita encorpada, feita de passados tão próximos que se envolvem em presentes-prementes de próximos futuros; que se pretendem construidos de palavras alegres e amorosas.

Aposto nisso!
Bom resto de domingo!!

augustoM disse...

Estar desencorpado deve ser tão difícil como querer com a escrita guardar a solidão.
Um abraço. Augusto

Amaral disse...

Quando as palavras são facílimas de pronunciar e escrever, as ideias fluem suavemente numa escrita escorreita e tranquila. E vão surgindo bocados da vida, momentos retirados dum contexto, cobertos de emoções e sentimentos variados, que nos transportam consigo em passeios embevecidos, quase familiares...

Menina Marota disse...

Palavras encorpadas de sentimentos e sensações que se leem vorazmente.

Um abraço carinhoso e grata por toda esta partilha ;)

mjm disse...

que grandioso texto!!!
daqueles com que me lambuzo toda!
esta tua escrita é para lá de boa. tem um ritmo danado, desenfreado; um cunho de pena madura.
não sei contar-te o prazer que me dá ler-te textos destes. só te posso agradecer e, mesmo isso, terei que o fazer mal. desculpa.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

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ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein