quarta-feira, 24 de maio de 2006

desesperança

A minha homenagem ao Fernando
Ah! Cambada de mafiosos, de malandros! Corja de bandidos sem cadastro! Banhosos de fato a sair-lhes das costuras, cada uma custando igual ao meu de comer um mês! Pestes de andar mansinho pelas gramas dos golfes e os tapetes das mansões. Tratantes de mãos polidas e massagem a horas, de cremes de odores que me põem a nausear a mim que uso os da prateleira do Hiper, ou, as mais das vezes, nenhum que o preço é para comer uma família. Matei-lhes o estilaço desde sempre, atirados nas poltronas dos cafés onde nunca entrei, nem entro que me barram a porta outros que foram como eu e deles mesmo se esquecem. E nem pensem que me dá este modo de me irritar muita vez. É hoje. É a gota a mais. Deteve-se-me a mão, mas não esta raiva contida. Este gritar calado contra a não justiça. Eu nesta fome de vergonha disfarçada. As calças de ganga escondendo o resto. Miséria de vida que ninguém olha de miséria. Buracos no estômago que nem levam um franguito, mas asinhas fervidas com sal e um arroz, se houver.
Palavras do número dois da filial da empresa. Surpresa de palavras. Aquele tom adocicado de voz. Aquele enrolar os erres. Aquele rolar os olhos. Aquele canastrão, engravatado, o fato riscado em cinzento a imitar de marca. Não reparou ainda que um boss veste calça de ganga, não das minhas que são de Carcavelos. Um verdadeiro boss usa blusão de marca. Fato é mesmo coisa de subalterno ou de pobre em dia de boda. Coisas que vou ouvindo por aí, que eu nos dois anos de Preparatória nem aprendi a falar a língua materna. Este português que uso deu-me a minha avó que Deus tem, dizendo-me poemas. Mas afasto-me do tema que é esta irritação que me faz bramar.
Ele mandou reunir o pessoal o que logo padeceu de razão. Chegou, armado em patrãozeco com um “nós” que lhe entontecia a maçã de Adão. Um sorriso, por certo de receio ou da má consciência, se lha resta.
Ficámos sem pão, esta manhã.
Aquela mulher chorava de mãos para o céu que emssombrara, negro nos olhos dela e nos demais. Patéticas. Gritavam o que as atraiçoava. Gritos sem som. Vozes de silêncio como se o ar se tivesse evadido e deixasse o som de se fazer. Eram de desespero e pasmo as bocas delas. Elas levantando a cabeça para o céu escurecido pelas suas lágrimas.
Eu sei que o que digo é nada e só a fome é real e só a injustiça dói de rebentar. Só a fome me pára. Vou-me irritando das injustiças, enquanto engano a fome, entre o café pingado da manhã e o caldo pelo fim do dia.


Desesperança de Munch

16 comentários:

wind disse...

Escritora, acho que o Fernando adoraria esta prosa, assim como todos os que a lerão vão gostar.
Por mim falo, está magnífica e a imagem muito bem escolhida! beijos

Licínia Quitério disse...

Antes da Desesperança (ou depois?), o Grito. Assim pintou Munch. Assim tu (d)escreveste, e muito bem, este quadro do nosso triste quotidiano. E, por ser tão triste, é urgente falar dele. Obrigada.
Licínia

liliana miranda disse...

Esta é uma homenagem à altura do nosso FERNANDO! fantástica!!
beijos

O Micróbio II disse...

Bela homenagem... mas eu trocaria o "Desespero" pelo "Grito" do Munch...

gato_escaldado disse...

um beijo comovido (pelo texto) e beijo solidário pela ausência.

folhasdemim disse...

Texto fabuloso este para o Fernando.
p.s. também eu faço hoje 2 anos.
Beijos, Betty

Alberto Oliveira disse...

... porque será, que de certa forma, a desesperança pintada por Munch, continua a ser actual ?

... mas será que a desesperança de Munch é assim tão parecida com a da ctualidade?

Finalmente: a desesperança de Munch, a deseperança dos dias de hoje, será a mesma desesperança do futuro?

Nilson Barcelli disse...

O Fernando, tal como eu, ficaria deslumbrado com este texto que, por certo, gostaria de ter escrito.
Beijinhos.

Menina Marota disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Menina Marota disse...

O teu Grito, enriquece ainda mais Munch, porque é saído da alma, tal como as suas pinturas...
Deixo-te um beijo, sensibilizada, e nele vai todo o afecto que tinha por esse Ser Humano, que partiu mas que, ficará vivo, nos nossos pensamentos.

Abraço-te carinhosamente.

lique disse...

Como sempre, é uma desesperança com a tua marca pessoal, enriquecida pelo quadro de Munch. O Fernando teria gostado, certamente.
Beijão

augustoM disse...

Conhecendo o Fernando como eu conheci, se ele estivesse aqui só te diria. Força camarada, a esperança é a última a morrer, desde que nunca nos calemos.
Um abraço e um obrigado por ele. Augusto

Alberto Oliveira disse...

... vim só para saber em que paravam as modas. Boa semana menina Seila!

VdeAlmeida disse...

Bonita Homenagem, SeiLa. À medida dele.
Beijinho

Anónimo disse...

Mto Bonito!
Gostaria de ter o seu link, mas no meu blog são as visitas que se linkam! Se for da sua vontade, vá até ao amar-ela e clique no logotipo do "Páginas Amar-ela", para adicionar o seu blog na categoria da sua preferência.
Beijinhos

Poesia Portuguesa disse...

- Tive um Professor, que um dia me disse acerca de algo que eu, na minha inocência, queria comentar:
- "Jamais te trevas a comentar o Mestre. Qual é a tua sabedoria para o fazeres?"

Ao ler-te, lembrei-me dessas palavras de um Homem sábio e, que me ensinaram muito.

Como poderei EU comentar-te?

Só posso deixar-te um abraço e nele vai todo o meu afecto.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

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meu honroso quarto lugar

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

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"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
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