sexta-feira, 8 de abril de 2005

estórias...

Dona Antónia modista.
Antoninha era apenas nome de designar a senhora assim de brincar. Maria Antónia para a família e amigos.
Era a Dona Antónia modista pois piadas eram pouco frequentes...nem as havia! mais agora que ela se deixara dos pontos e das máquinas e deitara na lixeira as cadeirinhas onde se assentavam as meninas da costura.
Antoninha há muito que ninguém se referia a Dona Antónia desse jeito de sentir, sequer de lembrar ou se a ela referir. Quase podíamos dizer que nunca existira uma Antoninha.
Maria Antónia era, essa sim, figura de presença assim designada pela madrinha. Mas também, mais ninguém, ao que o narrador saiba, se lhe referiu deste modo, ao tempo desta narração. Dona Antónia modista de profissão herdada precisamente dessa madrinha. Madrinha, modista de casa posta, freguesia certa e seleccionada de entre, e apenas de entre, as senhoras de nome e casa de brasão. (Verdade que muita camisa e fato de sair, vira o corte e a vestidura primeira, nessa modista madrinha de Dona Antónia. Mas essa roupa de pano de condição sempre inferior a uma seda ou a um brocado, essa de um corte que nem consulta de desenhados se precisara, saía sempre pelas traseiras na calada da noite ou muito antes de algum galo cantar. É isso que os leitores pensam esta,r eu narrador, dizendo: essa madrinha fazia umas roupas para o povo, mas era coisa de escondido para não desafamar a casa de modista que fizera nome. Estórias...)
Foi pois Maria Antónia, ainda menina, sentar o seu já bem apessoado traseiro, numa das pequenas cadeiras dessa madrinha. Levava-o, ao traseiro de então, recoberto em saias de panos de cotim, uma chita florida, um algodão na roupa de mais achegar ao corpo - um colete, um saiote. Dobrada como as outras naquele jeito de coser. As pernas, muito juntas. A roupa se achegando aos olhos tal como o prato da sopa.
Maria Antónia cedo chuleava de jeito que não saía um fio do interior da costura. Envelhecida a tia, já ela dava ordens de prioridades e modos de colocar o ferro na entretela ou a tesoura entre o molde e o tecido num espaço para bainhas e algum embebido.
Numa noite de um Janeiro muito nevado, a tia continuou o sono que dormira aí pelo início do sol se esconder atrás do monte e as galinhas acabarem com aquele odioso guerrear de arrumação nos poleiros. (Maria Antónia bem que viu o fogareiro de manter brasas para os ferros de engomar as roupas, toda a noite alumando.)
A madrinha ficou dormindo ía Maria Antónia nos seus dezassete anos. Não que soubesse esta idade com muita certeza, mas era mais assim do que menos porque os sangrares mensais já se lhe eram segredo só partilhado com a Emília Coxa, desde há largos seis anos.
Dormida a madrinha, ficou a casa em debanda. E eram muitos os vestidos em meio terminar e os fatos de tecido grosso, bem como uma meia dúzia de casacões de abafar. Havia ainda os cortes encarrapitados na sala de arrumos e passares de ferro.
Maria Antónia enterrou a madrinha (salvo seja!! está bem de ver que o narrador não gosta destas lides de funerais e resolveu brincar! quem a enterrou foi o Januário Zarolho mais o Pedro Castigo de Deus, os dois coveiros lá da zona)
No acto de ver enterrar, Maria Antónia estava toda de negro. Notaram-lhe o desgosto devido. Dona Antónia levava a cara coberta. De acima da cabeça até ao fim do começar a pele da gola do casaco, descaía um véu de brocado pesado e quase opaco. Ela quase não via. Mas, também ninguém podia ver como, por detrás do véu, ela sorria. Levezinho, Maria Antónia sorria a pensar que agora não havia ninguém para lhe mandar. Ninguém para lhe dizer: “Maria Antónia atende essa senhora, filha” e ela ali ouvindo aquela puta, amante do alcaide, que trazia mais um daqueles tecidos de seda que escorregavam e faziam as dores de cabeça daquela mocidade. Agora, morta a madrinha, teria ela uma outra a quem dizer: “Atende aquela senhora, enquanto acabo aqui esta prova!”. E lhe diria assim... num ar mandado!
O funeral passou. Muito passado se foi fazendo. Muito tempo de nunca mais, até ao dia em que Dona Maria Antónia sentou o apessoado traseiro, nunca apalpado por mão alheia (o que não vem nada a propósito do contar, mas isto são pequenas distracções do sacana do narrador, perdoem!) Dona Antónia sentou-se, pois, na almofada que cobria a cadeira junto à janela; o seu recanto da tarde desde que mandara deitar as cadeirinhas na lixeira e vendera, ao ferro velho que ali aparecera sabido da intenção que ela anunciara por dois ou três da cidade, ferros de engomar, máquinas de costura e, porque o homem fizera questão, duas tábuas de talhar. A caixa de dedais (desapareciam sempre que precisos!) e as almofadinhas de espetar alfinete, essas ofertara-as, a um pedido do sucateiro, pensando para que quereria o rapaz aquilo.
Sentada naquele recanto, viu o sol depositar-se como uma enorme romã descascada por detrás do monte. Sentiu um arrepio na zona onde o casaquinho se juntava ao pescoço. Levantou-se muito devagarinho.
Era hora de meio-dia, quando chegou a menina da limpeza. (Uma moça que nunca obedecia, assim pensava Dona Antónia saudosa de outras meninas.)
A menina encontrou Dona Antónia dormindo na cama.
A menina gritou de um sentir que aquilo era mais que dormir.
A menina gritou a pensar porque raio a mulher se deitara com aquele enorme véu negro a tapar a cara.
O que a moça não viu foi o sorriso de Dona Antónia por debaixo do opaco do véu.
(este sorriso o narrador nunca entendeu!)



imagem adaptada d’ AQUI

13 comentários:

TCA disse...

mó... a menina escreve bem.

bertus disse...

...ó mulher! tu estás feita uma contista do caraças!! Dá gosto ler-te e já estou arrependido de o fazer agora...antes de adormecer, mais logo; é que gosto de ler, já deitado, com os olhos a fecharem-se lentamente mas com a imaginação povoada das imagens transmitidas pelas letras. Regresso decerto, ao tempo de menino pequeno a ouvir as histórias da minha avó...

Intés!!

bertus disse...

...ah! tou como tu: a Nia tem uma história mirabolante!! Vai ver que vais gostar...

wind disse...

Caramba, como este texto está! EStou parva com a sexpressões usadas, com o ritmo da escrita, com a história, enfim com tudo. Cada vez caprichas mais:)Beijos "narradora":-)*

Unknown disse...

eh pá :) marafada que até fico cansado quando chego ao fim! mas que grande conto (em todos os sentidos...). cada vez escreves melhor. a sério. beijo

Amaral disse...

Quando vi o texto compridíssimo, pensei que iria chegar ao fim da leitura. Mas, embrenhado na dita, vi-me contaminado e rendido.
Se estava a ler Júlio Dinis, os "Serões" da província dos anos 1800, ou não, isso deixou de interessar, porque…

Como é mesmo o teu nome?...

agua_quente disse...

Espectáculo! Quando fôr grande quero escrever como tu. Conseguiste prender-me do princípio ao fim. Lindo. Beijos

lique disse...

Caramba! Já nem sei que te diga. Onde estavam todas estas personagens, todas estas vidas que nos contas? Este texto tem o nível de qualquer bom escritor. Li-o com esse deleite especial. E não te estou a dar graxa, que eu não sou disso! Olha, beijão! E obrigada pelos malmequeres que te roubei.:))

Unknown disse...

Ói mulher!
Este foi talvez o conto de que mais gostei. Os meus parabéns!
As coisas por estes lados vão andando e desandando. Se não fosse o blog, a vida ainda era mais estúpida, valha-me este entretenimento. Já estou na nova casa e com o trabalho da mudança, apesar de não fazer nada ou quase nada, sempre me vou cansando.
Beijão e um bom resto de fim de semana.

BlueShell disse...

Passei o conto " apente fino"....adorei. Fez-me lembrar lá na minha terrra, há muitos anos...uma "Mª Antónia"...
LINDO!
Jinho, BShell

Micas disse...

Como eu gosto de te ler e (re)ler.
Beijos e bom fim de semana

Conceição Paulino disse...

Cá estou lendo e fazendo a ronda os k estão a concurso. Boa leitura esta. Boa sorte. Bjs e ;)

Micas disse...

Já votei;)

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

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