terça-feira, 29 de março de 2005

cumplicidades


Dá-me a tua mão. Assim. Os dedos entrelaçados. Os braços enroscados. O teu ombro a tocar o meu. Agora, fecha os olhos. Cerra os dois olhos com muita força. Até veres luzinhas. Fixa essas cores que é o que vês de olhos bem cerrados. Deixa o corpo bem encostado ao meu. Apenas encostado. Não empurres. Sente o calor do meu braço. A força da minha anca na tua. A coxa encostando a tua com firmeza. Respira devagar. Inspira e expira sentindo o ar a circular.
Está um ar frio e seco. Estamos no cimo da montanha. Subimos para ver-o-mar. Lembras-te? Lá baixo, na cidade, fazia frio mas não este vento. O mar estava quase raso. O vento era de Norte. Riste-te quando te propus que subíssemos. Os sinos anunciavam a missa de Domingo de Páscoa e as ruas estavam pejadas de flores na entrada das casas. Tinhas decidido que não enfeitávamos a nossa. Afinal frente à casa havia cactos no chão. Cactos variados cada um florido na sua única flor de cor intensa. Cores grossas, como gostavas de chamar. E havia a buganvília amarela. E camélias e orquídeas variadas no parapeito de cada janela. As duas janelas a ladear a porta de madeira cinzenta. É! Tu nunca quiseste pintar a porta velha! Muito menos trocar por outra. O cinzento era de velho e tu entretinhas-te a lavá-lo com água quente e sabão. Lembras-te? Claro que te lembras!
Agora vamos aqui os dois muito encostados. Chegamos ao cimo da montanha. Um monte de escassos metros acima da planura do mar e da cidade. Os metros suficientes para se sentir o Norte como um vento de frio a cortar as mãos mesmo as nossas duas que estão entrelaçadas. Agarra bem a minha mão, mas não apertes. Sente como se estivesses colada. Eu sinto o meu corpo colado ao teu.
Não. Não sinto um corpo só. A tua forma sempre se encaixou na minha. Naqueles momentos em que escorregávamos para o abismo e subíamos montanhas anichados em lençóis ou na margem resguardada de um riacho. Sim. Eu sei. Nunca na areia fria numa noite de luar. Era nesses momentos que estava mais longe de ti. Lembras-te de concordares comigo?! Dizias que devíamos ser esquisitos porque ficávamos sós no acto de amar. Acentuavas, dizendo que era um estar eminentemente solitário. Os advérbios de modo, uma compulsão na tua forma apaixonada de dizer!
Acabei de cerrar os meus olhos. Antes olhava-te. Olhei para ti todo este tempo. Chorei quando cerraste os olhos. Esses olhos verdes que sempre dizem tudo. Nunca percebi porque era a palavra necessária em pessoas com olhos desses.
Mas agora só vejo luzes. Muitas luzes coloridas em fundo negro. Agora, devo ter rodado o glóbulo, e ficou branco com um ponto amarelo ao fundo.
Vamos andar devagar. Não fales. Querias dizer que me amas? Mas eu sei. Eu também te amo.
Hoje o dia está cheio de sol e de um frio trazido pelo vento de Norte. No esverdeado do mar havia pequeninas ondas de branco. Umas ondinhas a que chamavas cachão. Assim chamavas, tu que viveste em paragens que eu não conheci. O mar era pois de cachão antes de fechar os meus olhos.
Vamos andando, assim, devagar, muito agarrados ao que temos.
Muito agarrados um ao outro.
Vamos andando devagar com os olhos a ver apenas para dentro de cada um.
Vamos sentindo o vento, o corpo de cada um, o frio.
Vamos até onde a montanha se debruça sobre o mar.
Sabes onde fica o limite?
Não sabes?!
Eu também não!
Vamos muito devagar. Um passo a seguir ao outro até que a montanha deixe de ser e fiquemos debruçados sobre o mar muito verde e branco.
Debruçados entre a montanha e o teu mar de cachão.
foto adaptada de uma intitulada Cúmplices de voo

28 comentários:

Anónimo disse...
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Anónimo disse...
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Anónimo disse...
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Anónimo disse...
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Anónimo disse...

Gostei de viajar nas tuas palavras e imagens. É sempre bom conhecer novos blogs e ver que se fazem coisa bonitas por aqui. Aproveito para te informar q vou tomar a liberdade de crair um link do teu blog no meu, pois quem me visita tb merece conhecer o teu trabalho. Um abraço e Boa semana - João

Anónimo disse...

Puxa, mulher, fiquei sem fôlego!!!
Deve ter sido o teu primeiro texto que li e senti do princípio até ao fim.
Gostei da viagem, da tua viagem, da tua montanha, do teu mar, dos miríades de sentimentos...
Lindoooooooooooooo Seila.
E tão bem escrito, com um sentimento forte e arrebatador.
Fiquei sem fôlego! Deixa-me respirar.
Obrigado por esta coisa tão bonita.
Um grande abraço.

Lyra disse...

Nao te li! eheheh vim so dizer-te que ando com uma falta de tempo desgraçada. Manda-me um mail sim. ai vou me. depois leio. ate logo. (CONTA ME EM QUE PROCESSO ESTA A COISA)

wind disse...

Que texto extraordinário! Visualiza-se tudo e a acção não pára. Está soberba a forma de cumplicidade entre os dois:) Beijos

Anónimo disse...

Lendo o texto imaginei vi par de enamorados que atravessaram o tempo em dueto e por dentro, saboreando e apoiando-se em cada tansformação ocorrida. Continuação de boa semana e um beijinho :-)

Amaral disse...

Não há limites para o sentimento, não há limites para o amor. Quando se ama, a vastidão que nos envolve cabe dentro do corpo, cabe dentro da alma. O mar e a montanha ficam pequeninos no teu nicho de amor.

lique disse...

É exactamente um texto sobre cumplicidade. Que percentagem do amor é a cumplicidade, não sei. Mas é certamente uma parte grande. E muito, muito doce. Não preciso dizer-te que gostei muito, pois não?
Obrigada pelas ofertas :) Ó p'ra mim "singing in the rain"! :))
Beijão

acidgirl disse...

...fiquei sem palavras.É a primeira vez que visito teu blog e fiquei encantada tamanha a beleza e profundidade de sentimentos presentes em cada frase desse belíssimo texto!Virei te visitar mais vezes...

elisa disse...

Sabes, senti o vento frio a soprar-me na cara.
O teu texto prendeu-me da primeira à última frase. Gostei muito:)Beijinhos

bertus disse...

...será que é desta??? que comento?
Cumplicidade é um vocábulo que me atrái particularmente. Gosto. Prontos!
Cumplicidade é estarmos com alguém e não precisarmos de falar para perceber o que esse alguém quis dizer com um sorriso.
Cumplicidade devia ser, eu saber o que deste à Lique para ela andar a cantar à chuva?! Não me digas que andas a vender gin a retalho, aos amigos...
(desculpa Lique, mas desta mulher já espero tudo!!).
Cumplicidade seria a tua ida ao jantar de sábado...Cumplicidade será por fim, reafirmar-te que gosto de te ler...
Intés!!

Conceição Paulino disse...

Sabe smp bem vir até aqui "VERLER", Às vezes os coments n/ querem abrir..Bjs e :)

Monalisa disse...

Este texto fez-me lembrar um pensamento de autor desconhecido que li há uns tempos : amar não é olhar um para o outro, é olharem ambos na mesma direcção. Beijo

Anónimo disse...

Olá. Já aqui vim mas o Blogger não me deixou publicar o comentário! :(
Queria dizer-te só uma coisa bem simples: adorava saber escrever assim como tu o fazes! Os teus textos deixam escorrer emoção e sentimento! Neste eu senti mesmo essa cumplicidade de Amar que só quem Ama é capaz de ter.. ;)**M.P.

Unknown disse...

fiquei sem folego. que lindo. gostei mesmo. vê-se o filme que tu aqui escreves. beijos, amiga.

Lyra disse...

Fizes te me sonhar alto :-)

Unknown disse...

Cumplicidades... Estou aqui sem saber o que dizer! Já ia em osmoses inter qualquer coisa. Parei a tempo de não dizer asneiras. E quem nunca experimentou essa sensação?
Uma beijoca

almaro disse...

a cumplicidade é o estado do existir que mais me maravilha, porque no fundo no fundo o próprio existir é um estado sucessivo de cumplicidades que se interligam com um permanente dar ( há quem lhe chame amor)

sotavento disse...

Olha, o texto tá giro e tal e coisa e até sei que é muito mais do que a tua enorme imaginação mas venho aqui deixar-te as gotinhas a pedido do Ognid, toma-as, 'tá?!... Acho que são contra a azia das caldeiradas!... :)

Manuela Neves disse...

BJS DOCES

Nilson Barcelli disse...

O teu texto é soberbo e transporta-nos com ternura (doce, amarga, etc.) para as tuas bem elaboradas imagens.
Gostei de ver o cachão, o vento Norte, enfim, quase caí no precipício ao mar.
O pior é que estava sozinho...
Beijo.

PS: Já votaste hoje? Ainda posso ter 2 votos teus (o de hoje e o de amanhã...). Vê lá se não te esqueces, pois poderei cá voltar e dar-te um empurrãozinho para o tal precipício...

Anónimo disse...

Tenho cá vindo todos os dias, mas não tenho conseguido comentar! Vamos lá a ver se é desta. bj e bom fds da Fernanda

BlueShell disse...

Já tinha saudades. Jinho, BShell

bertus disse...

...é só para te dizer que "já estou em forma" depois do trabalho hérculeo de ontem á noite.
Não confundas com "la´está ele a dizer-me que fez mais um post!". Nada disso! Mas, olha: fiz mais um post!!
Intés!!

NOTA: E tu? Quando fazes um post? Quando fores grande?!
Intés!!

Mitsou disse...

Adorei! Já tinha saudades tuas, linda. Beijocas :)

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein