quarta-feira, 26 de janeiro de 2005

chuva


A porta estava aberta. Desfez o gesto de tocar. Empurrou. Atravessou o átrio muito ainda a cheirar a tinta, muito espelhos de deixar ver espalhados entre a porta envidraçada de entrada e as portas amarelas dos elevadores. Os elevadores eram todos, agora eram todos assim, com um ar de quem nos quer levar a outra dimensão, engolir-nos naquela lentidão de abre porta, desliza porta e o gesto repetido depois de entrar. Fazia-o nesse instante - com a mão enluvada de verde carregava no décimo sexto. Tão alto, pensara o seu pensar que ela, ela mesmo olhava distraindo esse seu eu, olhando o espelho e fazendo esgares à boca encarnada de dentes brancos e certos, verdadeiros. Sorriu de si para a imagem. Sorrir que a traiu pois que ficou por ele dependente de si e do seu eu. Conversavam à sua revelia que ela só queria ver o batom se estava ou não esborratado, a curva suave das sobrancelhas, aquele cair torcido da camisola verde por debaixo do ponche de muitas cores e, apesar de não reflectida, a saia comprida cor de palha de uma lã fininha muito quente quase a rasar a pontas das botas castanhas rasas. Mas ficou a olhar para isto tudo enquanto o seu pensar desfilava a tramá-la com perguntas e recordações. A luz piscou no 14º. Era engano. Por ele, levou os dois últimos andares a fazer mesmo o que queria e dava jeito - arrumou os óculos no estojo de metal, meteu-os na carteira onde ajeitou o emaranhado de papéis que para lá jogara antes de sair de casa enquanto anunciava para alguém que estaria decerto ainda a ouvir, não janto! vou ao teatro e a casa da Beatriz. Respondera-lhe um silêncio. Parou o elevador. O ritual das portas e ei-la lesta atravessando uma nave iluminada e oca de gente. E, mais uma vez, a luva premindo uma campainha ao lado de uma porta branca e dourada como o botão e encimada por 16º F em algarismos escavados no mármore branco.
Abriu-se a porta. Um salão, muito bem decorado, vazio de gente. Ninguém. Acordes de violino atravessavam as paredes. Uns sapatos de silêncio azuis atravessaram a parte de soalho e desapareceram. Ficou um ligeiro ar de lugar comum no salão.
Sentou-se no sofá vermelho. Ficou olhando o rio lá longe. Cheirava a coisas doces. Cachimbo?! Recostou-se. A nuca sentiu o fresco do alinhado do tecido. Fazia um sol escondido sobe nuvens cinza que corriam para sul.
Ouviu o nome que reconhecia chamar-se. Ergueu-se debaixo da saia e do poncho. Dependurou pelo pescoço a mala num tiracolo a desfazer-se. Os sapatos de silêncio indicavam-lhe o caminho. E agora voltara o pensamento a querer dizer de si e ela que estivera esta meia hora apenas a ser ela sem pensamento e dirigindo o sentir para aquele rio e aquele fim de tarde que anunciava finalmente chuva. Pensava na Beatriz que a esperava com os bilhetes para comemorar ou comemorar, tinha dito. A sala era pequena e a luz coada pelo cortinado duplo de tecido azul-escuro. Sentiu o arrepio do costume fender-lhe ao mesmo tempo os dois pulsos. Sorriu ao moço sentado na secretária. Lindo rapaz, pensou. Podia ser meu filho. A mão dele engoliu-lhe a luva e ela sentiu que ia ser engolida por alguma outra coisa. Sentou-se. Mandou calar com fúria o pensamento que lhe obedeceu como quase sempre. Jogou de leve a saca para o tapete. Recostou-se. Encarou-o com um olhar que sabia firme. Ele sorriu-lhe. Muito, mas muito longe daquela sala, chegou-lhe um som. Tão longe estava a voz que era daquela pessoa ali sentada em sua frente sorrindo e mexendo os lábios e ela ouvindo a voz e, mais estranho, a voz chegava-lhe apenas fazendo ouvir num repetindo: negativo.
O pensamento não lhe obedeceu. Nada lhe obedeceu. Ela tropeçou na saia, no ponche, nos sofás, no tapete e ficou agarrada ao moço num abraço tão sem jeito que só mesmo ele estando também contente porque a deixou chorar desmanchada em soluços e risos e tolices que parecia que algo de errado acontecera. E tudo fora do ela ter ouvido aquele acorde vindo de um confim de sabia lá de onde – negativo.
...................
Na rua reparou num guarda chuva grande todo repleto de gotinhas e sorriu do pensamento que antes prendera, lhe segredar agora em tom gozado – são as tuas lágrimas de alegria a passear... caíram de lá do 16º andar!

18 comentários:

Anónimo disse...

Ói minha linda,
já estás em forma?! e lá nos ofereces mais um belo texto. um beijo.

bertus disse...

...xiça! que já me encharcaste o raio do pc com esse chapéu de chuva aberto.
amanhã volto cá para te commentar; agora vou dormir.
Intés!!

BlueShell disse...

Gostei muito do texto.
Sim, vou andar por aqui. Penso que o meu pai gostaria. BS

Anónimo disse...

Oh Seilá,
Quase que não te conhecia esta tua feceta de escrever sério. Um texto profundo que me deixou sem fôlego.
Amiga, espero que já estejas melhor e que tenhas um tempinho para dar notícias... sabe tão bem ler o teu estilo de algarvia...
Um abraço, minha amiga e que tenhas um bom fim de semana.
Com chuva e menos frio!

Fátima Santos disse...

o anónimo aí acima poderia dizer quem é'! é cá um feeling! uma coisa que eu gotava! diz lá quem és, sim?!

Conceição Paulino disse...

Belíssimo texto de recuperação de memórias e experiências. As imagens nos espelhos às vezes traiem-nos, levam-nos para espaços outros diferentes dos do quotidiano sem estórias.Bjs e ;)

Anónimo disse...

E cá estou eu em final de mais um intervalo;) Prometo voltar. aflores / ailaife blog

Anónimo disse...

Mais um fantástico conto que nos deixas, amiga. A gripe afinou ainda mais a escrita, foi? beijos grandes.

bertus disse...

...gostei muito deste teu conto; o envolvente que rodeia a personagem central, a palavra-chave -"negativo" e o final imagético, colorido e de bom gosto, diz-me que já "estás pronta para outra" (o diabo seja cego, surdo e mudo!) gripe e que manténs intacto o sentido narrativo e de estilo muito próprio.

NOTA: Por esta crítica positiva, não te levo nada. Mas quando começares a aparecer na comunicação social com regularidade...pagas-me um jantar.
Fica bem e intés!!

Mushu disse...

E depois eu é que te trato mal, não é???? Ai ai ai a menina.
Ouvi dizer que pelos Algarves está um frio de rachar, vê lá não fiques congelada.
Um beijo

mfc disse...

Narrativa triste de umas memórias passadas...
Um abandono pode ser o inverno na estação mais prometedora!

lique disse...

O teu poder de descrever situações e emoções (a interligação é feita de forma extraordinária) leva-nos em mais uma viagem de palavras que nos agarram e nos fazem "ser" aquela mulher. Dizer-te que estás a escrever cada vez melhor, é já repetir-me. Beijão

wind disse...

Escreves como o "caraças" (desculpa) :)))) Já tinha também saudades:-) beijos*

Refúgio Lunar disse...

passando pelo teu repensado, penso que voltarei aqui ficando...

abraço

lique disse...

Querida, voltei para te dizer que tens lá um desafio no meu blog. Espero que aceites...

Å®t Øf £övë disse...

Gostei muito de ler o teu texto.
Boa semana.

lique disse...

Respondendo à tua pergunta: só tens que copiar as perguntas e dar as tuas respostas. E nomear mais umas quantas pessoas. Ou será que não vais aceitar o desafio? :) Beijinhos

mjm disse...

'C'um caraças'!!! É destes que eu gosto!
Agarrar pensamentos e mostrar deles o maquinismo. Apenas omitidas as peças que sobram, quando se remonta um relógio :))
Bravo, SeiLa!
Kisses

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

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"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
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