segunda-feira, 13 de dezembro de 2004

Maria...


-Anda Maria corre! Olha ali em cima no alto da torre da Igreja!
Maria arrumava a loiça. Os pratos muito limpos de um pano branco que dependurava na mão e mais parecia, quando o erguia lenta a retirar os restos de água do lavar, que afagava com algodão ou alinhado pano, ferida de ente querido.
De fora, o grito se ouvia:
-Maria! Anda! Corre! Anda ver!
Parecia coisa de aflição, mas ela, Maria, conhecia aquele deslariar e continuou a tarefa de colocar um sobre o outro, já bem secos, os pratos, dois, do almoço acabado há pouco. Ainda se deu em abrir a gaveta da mesa redonda e colocar, sem pressas, antes com desvelos, se diria, muito dobrada pelos quatro cantos e depois em quatro partes, a toalha de quadrados. Compra-a na feira no sábado passado. Enquanto passava a mão direita para aconchegar de melhor guardada, pensava que encontrara o António nesse dia. Há quanto tempo não o via! Pegava na toalha (essa que agora guardava) apreçando. Uma conversa de descuido com a feirante, cigana bem parecida se bem que não lhe tivesse quase visto a cara. O António. Partira dali há tanto! Ninguém mais lhe soubera o paradeiro. Deixara um bilhete na mesa, aquela redonda. Dizia apenas: Amar-te-ei sempre. António. Fora há tanto ano! Aquela barba! O cabelo muito louro! nem os brancos se viam! E os olhos! Aqueles olhos azuis olhando-a como se fosse ontem aquele longe dia! Desapareceu no meio da gente falando, falando e ela ficou olhando...a toalha de quadrados pendurada entre a dela e a mão da feirante e o coração a saltar-lhe de um não percebia de onde como se hoje ali fosse o outro dia. Tirara a nota da carteira como se nada mais tivesse a fazer que comprar a toalha. Recebera o troco e sabia que por mais que olhasse nunca mais o veria. Mas olhou tentando alcançar uma guedelha loura a andar apressada no meio da feira cheia de gente. Uma voz de dentro ralhou-lhe muito forte, muito zangada. Dizia-lhe que se lembrasse que ele, aquele, já não era o António o pai da sua filha. Esse fugira para sempre deixando um bilhete e nunca mais dissera nada. Era esta a história, não sabia ela que essa era a história?! Não havia António!
De fora para o dentro de casa a voz gritava:
- Maria, anda ver! O homem vai cair assim empoleirado. Corre, Maria!
Ela entreolhou a cozinha arrumada. Fechou de manso a gaveta, endireitou a jarra com um ramo de malmequeres apanhados de manhãzinha a dar de comer às galinhas. Havia tantos! Ainda mal abertos! Ainda orvalhados! Agora estavam lindos na jarra. Rodeados de verdes das folhas. Ainda com raízes. O transparente do vidro mostrava. Nestes gestos e observados, se perdeu não mais que em passando, ouvindo a que gritava e pensando “que seria?!”. Era melhor ir. Apesar de, como costume, não ser nada. Alguém que arranjava o relógio há muito parado nas dez horas ou um curioso que pedira ao padre para subir a ver de cima os campos de cevada. E como estavam lindos com tanta papoila e aquelas borboletas negras que pareciam contas caídas do colar de uma fada. Foi-se assim chegando, agarradas, como lhe era hábito, as duas mãos dobrando, para cima, para junto da cintura, o avental meio molhado. Assomou na porta. Olhou a filha ali especada no quintal. Aquele olhar azul meio debotado e a boca sempre a esboçar um sorriso ou pronta para se esboroar num babado de choro sem lágrimas. Olhou-a naquela saia de quadradinhos encarnados com a blusa muito apertada deixando no decote redondo assomar uns seios alvos, duros de menina. Os pés descalços enfiados num par de sandálias verdes muito velho. O cabelo loiro atado num tufo desarranjado por cima do pescoço. Era linda! Era muito linda a sua menina! Tinha, no momento em que assim, num sequer que instante em que a olhava, a mão em pala sobre os olhos assestados na torre da igreja ali ao fundo da rua; ali dependurada acima do quintal. Maria olhou para cima e gritou. Um grito que nem sequer se ouviu de forte ressoou no peito. Ela sentiu que não gritou, mas que julgou. No alto da torre o corpo de um homem balançava como um galho seco. Maria não gritou. Pegou na mão da filha, abraçou-a pela cintura como que para a proteger do que ambas viam. Só ela, Maria, percebia. Trouxe-a assim colada a ela. Sentou-se às duas na soleira, viradas ambas para dentro da casa. Deixou que a filha a olhasse com aquele ar de perguntar sem saber o que pergunta. Levantou o avental e enxugou um nico de água que corria do lugar que não devia. Ficou Maria assim abraçada à filha. Lá fora, junto ao muro baixo do quintal, passava gente em corrida, em vozearia. Maria bem ouviu o nome que diziam.
Aconchegou-se mais num encolhido que se deu em pranto de balançar o corpo.
Uma voz de dentro falava baixinho. Falava de dizer a história que ela dera em esquecer. Quanto mais a voz falava, mais Maria lembrava o balançar do homem. Bastara um relance. Vira quase sem ver. O sol batia forte na cabeleira ainda loira. A voz soava no seu lá de dentro. Levava-a a um tempo de guerra e de fome. Ele voltara de lá. Uma terra de nome que soava como de muito longe e nossa se diziam ser. Voltara. O mesmo cabelo loiro. Diverso era o olhar. Um outro olhar azul. Um azul sem fundo, sem alvo. E a voz. A voz rouca que cantava, agora falando, falando. Sempre falando de coisas que ela nem entendia. No meio da fala apenas ouvia, quando a ele dava de soluçar: Maria, amo-te! Nunca percebera da filha. E a voz dizia. Não, Maria, não! ele não fugiu, Maria! Ele foi que o levaram a tratar na cidade longe, lembras?! E ela chorava. Agarrava a filha que assim, mesmo sem a tal de guerra, ficara que nem ele sem mundo deste se aperceber. Outro, ela habitava. Um seu mundo de fantasia, dizia o doutor. Tratar de quê?! Deixar. Ela assim nasceu, assim irá morrer. Ali, agora, se cruzaram seus caminhos. A filha olhando, sem perceber, o homem que trepara no cimo da torre.
Maria já não chorava.
Ergueu-se devagar. Tirou o avental. Pegou a mão da filha. Sentou-a na cadeira e deu-lhe a caixa dos lápis, os papéis.
- Ficas aqui que a mãe vai ver se estão a concertar o relógio, sim?!
Ela sorriu de ver Maria sem chorar.
- Sim, vai. Olha, eu desenho o homem pendurado na torre. Sim?! O homem loiro. Viste que era loiro?!
- Sim! – respondeu Maria e saiu.

8 comentários:

bertus disse...

...é da quadra, diria eu sempre pronto a dizer coisas que devo e não devo que me está na massa do sangue. Que hoje também escrevi sobre uma menina loira "perdida" no meio de uma loja de uma grande superfície...A tua menina é muito mais séria que a minha e já "viu" o que uma criança não haveria de ver mas foste tu que a inventaste e tens sempre de dar um tom dramático ás figuras dos teus contos sejam elas crianças ou adultos. És assim, que se há-de fazer; de humores, desamores ou sorriso franco e aberto. Não mudes o registo..."avó"!
Abraço e intés!!

sotavento disse...

A história é intemporal com todo o tempo do mundo (esta parte acho que é do Rui Veloso...)
Fernanda, não há finais felizes!... :)

lique disse...

Mulher, andas a escrever estórias de (nos) encantar e comover. Coisas assim lindas saem de ti para te lermos de um fôlego e chegarmos a um fim nem feliz nem infeliz... real! Beijão.

wind disse...

Desculpa lá, cada vez escreves melhor. Fiquei sem respirar do princípio ao fim e queria ler mais. Envolves descrição, amor, mistério, é incrível! Muito bom:) beijos*

mfc disse...

Temos que pintar com cores os dias a preto e branco.
Parabéns.

Anónimo disse...

Seilá, gostei muito do teu conto... tem rítmo, tem batida, tem sentimento, tem dramatismo. Gosto muito da maneira peculiar como escreves. Faz-me lembrar o sotaque da madrinha aí para as bandas de Faro. Fui espreitar "olhares felinos"... oh moça, não me disseste que tens paixão pela fotografia!!! Que coisas tão lindas, Amiga!!! Um abração deste romeiro pelas terras dos celtas (que não é louro!!!) que teve a felicidade de descobrir a poesia que transmites com e do coração. Intés. José Gomes

Anónimo disse...

Bem digo eu, minha amiga, que tu estás a escrever cada vez melhor. Isto até me deixou arrepiado. Prendes por completo a atenção de quem te lê. Lindo. Beijos amiga.

BlueShell disse...

Lindo e muito expressivo! Cheio de sensações, pleno de emoçóes...gostei muito. Vai continuar? Jinho, BS

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein