sexta-feira, 15 de março de 2019

a tina


Diziam sempre como se fosse pedido ou reza; superstição que tivessem; e, se calhava dizerem-no num duo certeiro, riam silenciosas como tinham sido quase silenciosas as suas palavras. Aconteceu, hoje, elas dizendo, em uníssono: lá chegaremos, sem esforços de maior.
Duas mulheres descalças, como ela lhes pedira.
Duas mulheres que preparam cada uma seu jarro esguio e esmaltado.
Limpam-nos por fora e por dentro e irão, depois, enche-los de água.
Um ritual fatídico a cada segunda quinta-feira.
Enchem-nos com água tépida, até que transbordem.
Duas mulheres que sabem que ela já está na sala e tem a cobri-la um vestidinho de algodão, o corpo magro a ver-se-lhe no decote, nas cavas largas, na saia que lhe escorrega para o nível das virilhas, mal ela erguer um pé e a seguir o outro num vagar de rito.
Irá fazê-lo ao entrar na tina.
O mesmo vagar com que, depois, se irá ajoelhar, o vestidinho a desnudar-lhe o corpo muito mais do que a resguardá-lo.
As duas mulheres sabem e apressam-se a encher os jarros; e espreitam-na, a ela que fica uns instantes ajoelhada, o cabelo solto a ser sombra para o início das costas e pescoço, as mãos fincadas no rebordo da tina redonda.
As duas mulheres mal respiram a vê-la ir-se inclinando, a cabeça a descair-lhe sobre as omoplatas, o pescoço a dobrar-se-lhe num redondo tal como o resto do corpo.
Olham-lhe o corpo dobrado numa meia-lua a deixar salientes as cartilagens da laringe sob a pele tisnada e finíssima; a deixar apenas apercebidos os seios pequeninos na transparência da camisa.
As duas mulheres, que tinham criado o hábito de ficar a olhá-la, vinham, a cada segunda quinta-feira, num tão metódico cumprimento como era a ida que faziam à missa de domingo ou a confissão que não falhavam, quando chegava a Páscoa.
Entravam na sala apenas no momento exacto.
Uma sala enorme vazia de móveis e tapetes e espelhos; nada, a não ser o cortinado espesso que cobria a porta envidraçada que dava para marquise.
Entravam pouco depois de ela retirar, vagarosa, o roupão de flanela com que se cobria em dias de mais frio ou o outro de um tecido sedoso, se fazia canícula.
As duas mulheres sabem que ela chegou pela madrugada, e já acendeu, uma a uma, a miríade de velas que quase cobre o chão de ladrilhos; sabem que ela já foi buscar a tina de folha de Flandres e a colocou no meio da sala.
Uma tina onde o corpo dela cabe, perfeito, da ponta do dedo grande dos seus pés tamanho trinta e sete, ao finalzinho do osso redondo dos joelhos: o seu corpo magro ajoelhado no frio daquela lata, se é em estação de sol inclinado no firmamento, ou no fervente do metal aquecido de ficar exposto à luz que entra pela janela da marquise onde permanece pendurada de uma a outra segunda quinta-feira.
As duas mulheres sabem e aguardam.
Espreitam-na.
Vêem-na ajoelhada, as duas mãos agarrando a borda arredondada da tina num gesto intenso ainda que lasso, tal qual o seu corpo dobrado em meia-lua, os seios pequeninos a parecerem novelos que ela tivesse colocado sob a camisa apenas como enfeite, como brinquedo.
- Como desassossego - disse, um dia, uma das mulheres, e a outra assentiu sorrindo.
Ela dobrada na tina e era só então que as duas mulheres entravam, uma vinda da varanda e outra vinda da cozinha para que viessem, como ela dissera: entra cada uma de seu canto da sala.
E nenhuma das duas mulheres fazia um caminho linear, iam sim em zig-zagues curtinhos saltitando pelos intervalos das velas multicores.
Velas acesas rente aos ladrilhos, a cera que lhes escorria em lágrimas a lambuzar aquele chão já de si matizado de muitos tons de vermelho.
Algumas ateavam, por descuido, a ponta das túnicas singelas e longas, único aparato que cobria os corpos das duas mulheres.
Outras iam-se apagando dos salpicos de água, mas isso era só depois que as duas mulheres erguiam os jarros a deixar cair em jacto as águas tépidas com que os tinham enchido.
A água a cair sobre o corpo dela que se ia desdobrando, até que o líquido lhe caísse sobre o dorso esquálido, os jarros erguidos nas mãos das duas mulheres, e os cabelos dela a sombrearem-lhe o pescoço até que, com mãos rápidas, os afastasse; até que, com gestos languidos, mas precisos, os sacudisse, os dependurasse sobre o rosto, e a água, que sobejava em cada recipiente, escorresse num jacto estreito, quase doce, sobre o arco ossudo do pescoço e ela se fosse erguendo, erguendo, até ficar inteira, quase nua, encharcada no meio da tina, no meio da sala, e as duas mulheres saíssem, tão discretas como tinham entrado.




7 comentários:

wind disse...

Estou farta de escrever isto: Tu escreves/descreves de tal maneira que uma pessoa ao ler, já está na história a ver tudo naquela dimensão e não de fora!
É demais!
Beijos

Maria de Fátima disse...

mulher tu foste a unica pessoa que sempre me chamou escritora rss por isso não te espantes se o faço :)

são branca disse...

Tão belo.

são branca disse...

Tão belo.

são branca disse...

Tão belo.

Maria de Fátima disse...

Obrigada Sao.

wind disse...

E és mesmo uma grande Escritora carago!:)
Beijos

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein