Quem estima os seus idosos, e deles se mantém próximo, sabe das pequenas misérias, comuns a todas as vidas, somadas aos agravos que a idade perpetra. Os achaques chegam, na maioria, sem bilhete de volta. O tempo vazio é preenchido com afazeres inventados, para tanto sobre energia e vontade. Dia-a-dia comprido. A dar para tudo-o-pouco previsto desde o levantar do estore. Pequeno-almoço demorado pela lentidão dos gestos que tiram os comprimidos das caixas com quatro divisões: manhã, almoço, tarde e noite. Faltando um, a dúvida surge primeiro: “já o tomei ou esqueci-me de o pôr?” Pelo sim, pelo não, há procura no saco chegado da farmácia. “Como pude deixar acabar o que maior falta me faz?” E vão ao Centro de Saúde pedir receita; apelam ao farmacêutico do bairro que a avie e deixe como venda suspensa – “para a semana já lha trago menina Lourdes.” E trazem, após horas de espera ou madrugada feita para o primeiro lugar na fila.
Escoam a manhã na manutenção possível das rotinas antigas: as compras de subsistência, o café com gente amiga que, entre dois dedos de conversa, ocupe o tempo em falta para o almoço. Frugalidade provável, seja pela pensão curta ou pelo apetite esvaído. Depois, é a vez da sesta acalmar o espírito. Esvaziar o pensamento para que o sono coma da tarde uma hora ou duas. Pelas cinco da tarde, do dia passaram dois terços. Para a fracção restante há o ecrã que desfia concursos e nostalgias. Olham, à cata de afecto, as fotografias encarrapitadas nos móveis - filhos, netos e bisnetos de repente muito longe ainda que estejam perto. Também eles engaiolados na azáfama, nas casas exíguas e nos medíocres rendimentos. Sendo hábito o telefonema quotidiano dos filhos no antes ou pós-jantar, pertence-lhe momento alto que anima os olhos esmorecidos. Nada mais conta ou têm para contar que a boniteza e progresso dos netos, os primeiros passos do bisneto, o outro que está para nascer. Na carteira, as imagens de sorrisos felizes que lhes justificam a vida havida e por haver.
E quando uma hora foi passada depois do telejornal que seguem sem vestígio de surpresa, salvo haja notícia de acidente ou calamidade, vestem a roupa de dormir. Tomam leite ou chá que empurre o comprimido da noite. Escrupulosamente, lavam as dentaduras. Deixam-nas de molho com uma pastilha de Polident. Olhando ao espelho as gelhas e os lábios descompostos para dentro, foge um suspiro. Já deitados, sentem na face a ausência do amor falecido, dos beijos dos filhos, dos risos dos netos. E no silêncio de breu, rezam uma oração para serem mansas as dores e a noite, para que saibam da luz se acordarem.
Crónica de Teresa Castro publicada em pnetmulher"[01-09-2008]
1 comentário:
Excelente e realista crónica.
Beijos
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