Não sei se o cardamomo
alivia dores de alma, se as bagas mínimas que ejecta das suas duas meias
conchas fariam um chá que acalmasse este meu desassossego. Talvez apenas alivie quem grite num desespero: "porra que me doem as cruzes" . Talvez.
Para o saber, teria que
consultar os livros.
Certo que poderia fazer uma busca na internet, mas isso é coisa
para que raramente tendo, que eu prefiro tirar da prateleira a pasta mais
farfalhuda que lá tenha, aquela onde sei ter deixado registo acerca de plantas e suas virtudes; tudo manuscrito, tudo naquela letrinha arredondada que eu então tinha, que até a letra se me tornou diferente com o passar dos anos; talvez encontre o recorte de um jornal que num sábado do século passado,
informasse serventias dessa planta oriunda das índias, essa, e agora me recordo, que é um poderoso afrodisíaco.
Com ou sem cardamomo, terei que centrar-me, inteira, num cardume de
objectos, tão unidos a mim como a carta aos selos que a lacram, o meu corpo disposto a sentir o que nunca aprendeu a ter em conta: o peso e arredondo dum pisa papéis de vidro com ou sem a torre Eifel
lá dentro, o áspero na madeira dum pião e o frio bicudo do pedacinho que irá
rodopiar, primeiro em cima da carpete e depois, com jeito, na palma tremente da
minha mão, haja, ou não, a ajuda de um chá de ervas, uma tisana, ou que eu mastigue cardamomo, o que me porá, ao menos, um hálito de anjo.
Eu a sentir o
cocegar redondo do bico de um pião que nem existe senão na minha imaginação. Eu a tremelicar ao ritmo do seu rodar na
palma da minha mão, eu que, como todos, presumo, não fui atenta, uma dia a
seguir a todos os dias desta minha vida, aos pequenos gestos, aos pequenos
objectos, ou que sejam eles imensos; desatenta do seu toque, do seu manusear; eles a encostarem-se-me, a executarem perante mim os seus trejeitos e eu alheia, ainda que a observá-los, ainda que a tocá-los; cada objecto a interagir como este meu corpo que estremece, o coração sobretudo,
se o objecto ronca ou faz apito ou simplesmente é, como o pisa papéis, fresquinho
e redondo e liso: tão lisos e suaves que são alguns objectos!
Tão suaves ao caírem no chão,
e não é o caso, claro, do pisa papéis de vidro, nem do pião ao caírem num
soalho, mas será, de qualquer um deles se embaterem no fofo de um édredon
de penas; como será suave, ainda que jogado, o cair dum lenço de seda seja onde seja que caia.
…e se o lenço de seda cair
no fogo?!
E é para resposta a perguntas como esta, que eu duvido que haja cardamomo ou planta outra que
me valha.
Mas vou conseguir, doa o que doa, que eu hei-de rememorar todos os sentires
que tenho tido dos objectos mais díspares, e farei tão bem como se os tivesse em
presença embora nem tendo deles mais do que a memória de como os tenho interagido.
Serei capaz de dizer, apenas com a fala do meu
corpo: isto que tenho aqui na mão é uma agulha, uma tesoura, um prato, um
alicate; e dizer de como é fofa a cama em que nem me deito; ou de como é alto o local do céu onde
sobe o meu papagaio.
Olhem, olhem que colorido!! exclamarei eu, apenas com os dizeres do corpo.
Olhem este redondo onde enrolo a guita que pego na mão esquerda, direi a fazer o gesto certo; olhem como jogo o objecto pelo chão e o apanho, os dois dedos, o anelar e o do meio, afastados um do outro para que ele pule sobre a minha mão; olhem como rodopia, e como eu tenho cócegas e pisco os olhos dessa pura impressão!
Olhem este redondo onde enrolo a guita que pego na mão esquerda, direi a fazer o gesto certo; olhem como jogo o objecto pelo chão e o apanho, os dois dedos, o anelar e o do meio, afastados um do outro para que ele pule sobre a minha mão; olhem como rodopia, e como eu tenho cócegas e pisco os olhos dessa pura impressão!
Viram o meu pião?! serei eu de olhos esbugalhados, o pião a rodar apenas no meu imaginário, apenas no meu gesto que é, muito cá do fundo da minha alma, o grito que calo: viram este objecto que manuseio?!
Não viram coisíssima nenhuma
e é esse o meu drama, o que me faz, até, num desespero, talvez numa esperança, apelar às propriedades milagrosas das plantas, lembrar-me, até, inopinada, do cardamomo.
2 comentários:
Também quero essas mezinhas, qualquer dia estou como tu:)
Beijos
Caí aqui por acidente. Entretida em buscar no dicionário o significado da palavra "tisana". Dei de cara com seu texto e o li enquanto bebericava uma tisana de alho e limão.
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