quinta-feira, 12 de julho de 2012

a passar o tempo


se contasse o dia, se narrasse o dia de antes e o dia de depois
um dia a seguir a outro
horas
segundos dependurados nas entradas dos minutos, uma plêiade de instantes
sussurros no silêncio, que o passar do tempo cria movimentos no ar circundante
e Maria Rosa removendo o pó das estantes com o dedo indicador da mão onde em tempos tinha trazido uma aliança e hoje nem a marca que o sol teimava em deixar de um Verão a outro
o pó soltava-se da madeira em tiras da espessura do seu dedo que era um dedinho de nada, ela que nunca mais crescera desde o exame de admissão ao liceu e se mantivera muito magra ainda depois de amamentar três filhos, quase sem gordura a não ser no rabo e um nadinha na cintura
o dia escoava-se e, de vez em quando, muito de longe em longe, Maria Rosa lá ia mordiscando uma torrada ou fazia a si própria o esmoler de uma tirinha de queijo de ovelha
uma tira de nada e bebia água
e os segundos escoavam-se, e nem era necessária ampulheta onde o tempo escorresse por acção das leis da gravidade, e nem relógio onde o cuco viesse, mecânico e feioso, espreitar quem saltava de susto com o seu cucu repetido tantas vezes quantas fossem as horas, os minutos, ou os segundos
nem Maria Rosa tinha por ali o som irritativo de um pêndulo e o dãodão do martelo a ecoar pelas paredes
nada que marcasse, em compassos diversos, um mesmo tempo, como se o tempo fosse tão apenas o ritmo que fizessem as botas de soldados que passassem, ou o marchar de outra gente que deixaria lenços de papel sujos de suor ou de ranho pelo empedrado
o tempo sorvendo-lhe o único bem que ainda tinha, o bem único que afinal tem quem cada um dos que ainda por aqui anda, e Maria Rosa sossegada, presa naquele pó que cobria a madeira das estantes nos espaços estreitinhos que sobravam de tanto livro
nunca os leria todos, pensava Maria Rosa, e sentia uma espécie de desgosto
e se os lesse acabaria por esquecer cada enredo, se era naquele que havia um tio com uma ferida repugnante que a sobrinha tratava, em cada noite, com pinça esterelizada na chama de uma lamparina
ou ela estaria confundindo com aquele enredo onde alguém prensava com algodão embebido num líquido amarelo, desinfectante que escorria pela barba grisalha de um homem que nem era ssim tão velho, mas fora alistado numa guerra onde o tinham ferido
ou seria naquele  livro de capa verde que Maria Rosa teria lido a história de cunhado e cunhada entretidos em marotices, cerejas e frutos secos que eles misturavam nos misteres do sexo às escondidas dos parceiros, a dona Miluzinha catequeista que nunca consentira em desnudar-se, e o Xavier Deniz que nunca fizera sexo de outro modo desde aquela noite
era, sim senhora, era naquele livro de capa cor de couve onde estava escrito, em letras amarelas: Xavier Deniz, seu marido, um livro pícaro, genialmente escrito, a tratar com despudor e graça as curvas sinuosas do sexo na alcova
e o outro
Maria Rosa firme na discórdia de que fosse assim tão simples dizer que era perdido o tempo que ela sentia a pulsar-lhe, ia colocando um dedo na capa de cada livro e fazendo o esforço de revisitá-lo, ou ela retirava-o da estante e lia, uma folha ali, outra mais adiante, a fazer-se encontrada com aquele meliante do Jorge, ou a sem graça da Gertrudes, e a ver deitado, na torreira de um sol alentejano, o gato Jeremias
não tivesse lido e nem se teria recordado do felino que o escritor colocara na varanda, ou teria o gato vindo colocar-se, Maria Rosa não entende os segredos da escrita e por isso não sabe, mas sabe que, se não fosse o gato, Hermínia não teria tropeçado e sem isso não se teria feito aquela curva sinuosa no enredo que Maria Rosa gostava de saber qual foi, mas esqueceu
o tempo escoando-se e ela especada na estante, que antes ser isso do que ficar contando o que tinha sido o dia antes, e o dia depois desse, e mais o dia de hoje, e ainda ficar a imaginar o que seriam os dias seguintes
antes Maria Rosa ter optado por ficar naquele solilóqio mudo com os livros, e a usar o dedo para limpar o pó das estantes

1 comentário:

wind disse...

Estas descrições são demais!
Beijos

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein