se contasse o dia, se narrasse o
dia de antes e o dia de depois
um dia a seguir a outro
horas
segundos dependurados nas
entradas dos minutos, uma plêiade de instantes
sussurros no silêncio, que o
passar do tempo cria movimentos no ar circundante
e Maria Rosa removendo o pó das
estantes com o dedo indicador da mão onde em tempos tinha trazido uma aliança e
hoje nem a marca que o sol teimava em deixar de um Verão a outro
o pó soltava-se da madeira em tiras da espessura
do seu dedo que era um dedinho de nada, ela que nunca mais crescera desde o
exame de admissão ao liceu e se mantivera muito magra ainda depois de amamentar
três filhos, quase sem gordura a não ser no rabo e um nadinha na cintura
o dia escoava-se e, de vez em
quando, muito de longe em longe, Maria Rosa lá ia mordiscando uma torrada ou fazia a
si própria o esmoler de uma tirinha de queijo de ovelha
uma tira de nada e bebia água
e os segundos escoavam-se, e nem
era necessária ampulheta onde o tempo escorresse por acção das leis da
gravidade, e nem relógio onde o cuco viesse, mecânico e feioso, espreitar quem
saltava de susto com o seu cucu
repetido tantas vezes quantas fossem as horas, os minutos, ou os segundos
nem Maria Rosa tinha por ali o
som irritativo de um pêndulo e o dãodão
do martelo a ecoar pelas paredes
nada que marcasse, em compassos
diversos, um mesmo tempo, como se o tempo fosse tão apenas o ritmo que fizessem as botas de
soldados que passassem, ou o marchar de outra gente que deixaria lenços de
papel sujos de suor ou de ranho pelo empedrado
o tempo sorvendo-lhe o único bem
que ainda tinha, o bem único que afinal tem quem cada um dos que ainda por aqui
anda, e Maria Rosa sossegada, presa naquele pó que cobria a madeira das
estantes nos espaços estreitinhos que sobravam de tanto livro
nunca os leria todos, pensava Maria
Rosa, e sentia uma espécie de desgosto
e se os lesse acabaria por
esquecer cada enredo, se era naquele que havia um tio com uma ferida repugnante que a sobrinha tratava, em cada noite, com pinça esterelizada na chama de
uma lamparina

ou seria naquele livro de capa verde
que Maria Rosa teria lido a história de cunhado e cunhada entretidos em
marotices, cerejas e frutos secos que eles misturavam nos misteres do sexo às
escondidas dos parceiros, a dona Miluzinha catequeista que nunca consentira em
desnudar-se, e o Xavier Deniz que nunca fizera sexo de outro modo
desde aquela noite
era, sim senhora, era naquele livro de capa cor de couve onde
estava escrito, em letras amarelas: Xavier
Deniz, seu marido, um livro
pícaro, genialmente escrito, a tratar com despudor e graça as curvas sinuosas
do sexo na alcova
e o outro
Maria Rosa firme na discórdia
de que fosse assim tão simples dizer que era perdido o tempo que ela sentia a
pulsar-lhe, ia colocando um dedo na capa de cada livro e fazendo o esforço de
revisitá-lo, ou ela retirava-o da estante e lia, uma folha ali, outra mais
adiante, a fazer-se encontrada com aquele meliante do Jorge, ou a sem graça da
Gertrudes, e a ver deitado, na torreira de um sol alentejano, o gato Jeremias
não tivesse lido e nem se teria recordado do felino que o escritor colocara na
varanda, ou teria o gato vindo colocar-se, Maria Rosa não entende os segredos da escrita e por isso não sabe, mas sabe que, se não fosse o gato, Hermínia
não teria tropeçado e sem isso não se teria feito aquela curva sinuosa no enredo que Maria Rosa gostava de saber qual foi, mas esqueceu
o tempo escoando-se e ela
especada na estante, que antes ser isso do que ficar contando o que tinha sido
o dia antes, e o dia depois desse, e mais o dia de hoje, e ainda ficar a imaginar o que seriam os
dias seguintes
antes Maria Rosa ter optado por ficar
naquele solilóqio mudo com os livros, e a usar o dedo para limpar o pó das
estantes
1 comentário:
Estas descrições são demais!
Beijos
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