Uma casa onde ainda se sentiam, grossas, ensebadas de compotas e
manteiga fresca, as dedadas de filhos e de netos. Onde ainda cheirava à caca
das fraldas e ao mijo de cães e gatos. E se havia restos que pudessem dizer de
como tinha sido, eram esses besuntados nas paredes.
E os riscos.
- Deixa ver se cresceste - dizia, e marcava um risco.
Um risco a lápis. Sempre grafite para poder ser removido e nunca
tinha sido. Tinham ficado espalhados pela casa entre camadas e mais camadas de
cal viva, limpezas que fazia nos dias quentes em que não chovia.
E haveria por ali, impregnadas na cera do sobrado, sobretudo nos
quartos, pedacinhos de pele. Dermes de um e outro soltas do corpo de quando o
sol fazia escaldões e eles dormiam grandes sestas seminus.
E, aguçados, poderiam surgir pedacinhos de unhas que eles cortavam
uns aos outros, e fiapos dos cabelos. Franjas enormes que aparavam.
- Deixa ver que eu dou um jeito...
e lá iam umas pontas loiras se era o cabelo do Zé Pedro, ou mais
escurinhas se era o cabelo da Matilde ou do Rui ou da Maria Cremilde.
Seria caso raro encontrar um pelo encarnado do cabelo muito ruivo
do Simão que nunca passou férias lá na casa. Ele e os irmãos eram os netos que
andavam lá por fora e, se vinham, ficavam alojados num hotel. Esses netos que
nunca compreenderiam o horror estampado nas caras do Zé Pedro e da Matilde,
sobretudo eles, a ouvirem o Simão dizer, tinham sido as partilhas na semana
passada: que sim, que ia deitar abaixo e depois construir.
2 comentários:
As casas são a arqueologia familiar. O acumular de memórias na gaveta da saudade.
É mesmo o horror!
Beijos
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