...nem estava despida nem com roupas que se pudesse dizer a noite passada passou-a numa cama, ali dentro, dormida entre pacientes, entre aparelhos com sinais de luzes a dizerem se as tripas funcionam a preceito, se tem açucares e oxigénio em doses justas e os colestróis em níveis decentes.
Ela vestia calças de ganga muito justas - azuis- e uma camisola verde a marcar-lhe as mamas, e tinha um blusão em cabedal castanho que descaía no braço da cadeira: coisa de corte duvidoso tal como as botas com tacão do tamanho do meu palmo bem esticado, num castanho semelhante ao blusão, que era mais um amarelo caca.
Dormitava quando me sentei. Eu a sentar-me a seu lado na cadeira que sobrava. Eu a medo: com licença. Eu com todo o cuidado e ela a remexer o corpo magro. Senti-lhe o cheiro que era um perfumezito sem destino em prateleiras que não fossem as de um qualquer supermercado.
A mulher que tinha rimel nas pestanas e batom a cobrir-lhe os lábios - encarnado - não estaria ainda na casa dos quarenta, teria até muito menos, não fosse aquele leve traço - reparei que tinha um de cada lado dos lábios - e um plissado, ainda que suave, no canto dos olhos que ela manteve fechados apesar do ruído que troava no corredor feito sala de espera. Um corredor apinhado: doentes recebendo líquidos vertidos de saquinhos transparentes, caras de estar fartos, caras de estar doente, e havia-as, também, de quem está velho.
Os médicos esgravatavam por ali e os técnicos e os enfermeiros.
Os médicos esgravatavam por ali e os técnicos e os enfermeiros.
Um relógio especado na parede assinalava, mudo, a passagem lenta, imensamente demorada, do tempo que pesava como se fosse um suor de trabalhos forçados, e seria dele que o ar semelhava pejado de maus gases - como custava respirar.
Ela remexeu uma mão sem anéis nem pintura nas unhas e eu vi-lhe o relógio, uma coisa enorme com ponteiros a navegarem entre números escritos a vermelho sobre fundo azul. Estava parado nas duas de um qualquer outro dia que não este, que era meio dia e treze no relógio da parede.
Natércia Pimentel, chamou a enfermeira e ela endireitou-se, abriu os olhos que eram enormes e de um azul de céu ensolarado, e ficou a agarrar a napa preta do cadeirão como se fosse a amurada de um navio de onde olhasse, incrédula, que a chamavam do cais.
A enfermeira era tão bonita e tão menina, a olhar a mulher e a dizer: venha comigo.
Eu sorri e ela piscou-me os olhos como a responder, e sorriu também, a afastar-se. Só então lhe vi o chapéu de feltro. Verde. Igual ao tom da camisola. Um chapéu que ela tinha enterrado quase até aos olhos. Um chapéu a não deixar desvendar a cabeleira, a tapar, diria eu, um cabelo que seria em cachos de vermelho, ou em doirados, ou negro atado em duas tranças.
Assim pensei eu a olhar o chapéu da mulher colocado como se quisesse esconder.
6 comentários:
Escritora, excelentemente descrita a situação do hospital e das personagens.
Beijos
É claro que eu pratico o "vivendo e aprendendo", como tal estava absolutamente convencido que o termo "plissado" se aplicava exclusivamente a tecidos. Também achei que ficava ali bem e não feria o contexto. O pormenores estão deliciosos.
presumo que fazes o "copy/past" quando colocas os textos aqui e também presumo que usas o word para isso. As formatações de texto em HTML oriundas do Word ficam alteradas no blogspot, eu uso um truque, faço primeiro o CP para o notepad, porque não altera o HTML e só daqui transfiro para o blogspot, ou então vou à edição de HTML e retiro a formatação.
No teu estilo inconfundível li uma bela descrição da dona do chapéu que cobre uma cabeça que às vezes há vergonha em mostrar.
É bem triste estar nessas salas de espera.
Nas salas de espera todos os relógios param.Nas salas de "dentro" nem o tempo existe.
É lá que tiramos os chapéus e mostramos uns aos outros todos os nossos "plissados", sem vergonha nenhuma.
Sem mais: tiro-te o chapéu por este texto fabuloso!
(O de Corto Maltese, pode ser?)
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