domingo, 24 de janeiro de 2010

Passajando rotinas






um texto  publicado por mjm  a quem agradeço, que é o mínimo que se deve a quem escreve textos como este que ela escreveu



"Não me venham dizer que os limites se reconhecem por se ter inventado uma sinalética e por proliferarem cartazes normalizados perfeitamente decalcados sobre os rostos, porque Maria da Graça desconhece códigos e é regida pelo instinto que lhe veio das coisas terrenas e nem sabe que alguém as apelidou de realidade. Se sonha paraísos, ninguém lhos mostrou. Talvez a teia da imaginação seja isso: um intrincado de necessidades que passam a fronteira física - talvez por isso alguém um dia se aventurou num passeio maior do que a área do seu quintal e deu de caras com o universo.
O que é certo é que Maria da Graça sente os pregos retorcidos a rasgarem-lhe a pele dos sonhos e reconhece amarelecidas as manchas que cunham as lembranças, mas não a vontade. Não sabia muito bem porquê, nem se interrogava sobre isso; sabia apenas que em cada dia se levantava com o sol e que quando abotoava o último botão da camisa e erguia os braços na última volta do nó do lenço, enquanto os descia já os trazia eléctricos de vontade, tal um ciclo pela repetição, mas novinho em folha o gesto da navalha que corta pão e queijo e os leva instintivamente à boca. Aquela fome sem hora, que faz dos olhos boca e das mãos ceifeira que sega trigo, joio, tudo o que vem da terra e dos bichos à volta. Uma fome sôfrega que desperta a saliva e abre directo o caminho entre dentes e estômago e todo o âmago se transforma num infindável aparelho digestivo e voraz.
Numa dessas tardes soalheiras, àquela hora entre o turno do chão lavado e a loiça a secar no escorredor, e o do migar das couves para a refeição da noite, passajava trapos, entretendo mãos e pensamento - não necessariamente por esta ordem -, quando num ímpeto irreprimível se levantou e se lançou a correr pátio afora. Só parou quando pernas e fôlego lhe negaram outra distância e espojou-se. Terra vermelha, pólen, restolho; a terra toda num turbilhão dentro dela. Ali deitada, sob um céu azul enorme, subitamente rasgado pela estridência da sua imensa gargalhada.
Estremeceu a terra toda, na tarde em que Maria da Graça vomitou papoilas."




e assim celebro o papoilas de janeiro que veio à estampa faz hoje um ano

3 comentários:

Mena G disse...

Arrebata.
Fantáctico é palavra curta.

wind disse...

Quando em 2005 o achei surreal, fui completamente estúpida!
Este texto é fabuloso!
Beijos

Sofá Amarelo disse...

Vidas de pessoas sem história para contar mas que ainda assim podem fazer estremecer a terra... bem hajam todas as Marias da Graça espalhadas por aí, elas não sabem a força que têm...

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein