sábado, 10 de outubro de 2009

o concerto

Maria Amélia morderia um lenço, mas nem isso tem que seja digno dos seus dentes ainda fortes apesar de ir entrada em anos, que serão quarenta e oito em trinta e um de Agosto. Um lencinho de pano que se desfiasse a cada mordida do seu desespero.

Maria Amélia a abrir e fechar, vasculhando, a mala de verniz enorme que tem sobre os joelhos, uma coisa desmesurada, moda neste inverno, um saco disforme com muitas fivelas e dois fechos que nem levam a um bolso, são apenas enfeite. Um malão que lhe custou uma fortuna apenas pela razão de ter um nome escrito aqui e ali por todo o forro, que nem é de seda e seria dobrando.
É desse malão que Maria Amélia retira uma caixinha azul com muitos dizeres, que ela já não lê a não ser que encavalite os óculos no nariz que o dela é curtinho e com abas carnudas entre dois olhos muito azuis. Uma caixa de comprimidos, que está na hora da droga para que quando ela vier possa dizer-lhe com muita calma: minha cabra, e etc. As unhas que ela tem envernizadas de vermelho, longas, rasgam o celofane que cobre a embalagem e depois, segurando na pontinha de dois dedos, como se fosse coisa que lhe desse nojo, mete na boca uma pastilha cor de rosa e engole água a sacudir a cabeça para trás de modo que quase se nota o comprimido nadando no bochecho de líquido acompanhando os movimentos dos anéis, na garganta.
Maria Amélia sempre a mascar a pastilha elástica a saber a morango, o que lhe faz nos cantos da boca uns montinhos de cuspo que ela vai lambendo com a língua, e lhe retira o viço ao batom vermelho.
Maria Amélia sentada na esplanada a acalmar o desespero de estar esperando aquela parva da Irene que prometeu que viria entre as nove e as nove e um quarto e já são quase dez e o diabo da amiga que nem vem, nem lhe permite deslocar-se dali, da mesa do café onde está sentada: a do canto, junto à buganvília – que se sair dali a outra perde-se, há-de anunciar: tu faltaste ao encontro, olhei e não estavas sentada na mesa que tínhamos combinado. Um enredo.
Maria Amélia esperará porque hoje prometeu a si mesma que iria dizer-lhe umas quantas verdades.
Fará pois o sacrifício de a aguardar na mesa combinada se bem que estejam a cair uns pingos, coisa de nada se o empregado abrisse o guarda-sol. Mas àquela hora… E Maria Amélia vai mastigando a pastilha elástica que já quase não sabe a morango.
E toca o telemóvel. Maria Amélia atende.
- Sim…
- …
- Paciência… fica para outro dia.
- ….
- Não me importo nada. Vai, sim, vai.
Maria Amélia a mentir com todos os dentes e, do lado de lá, a outra continua a falar.
- ….
E Maria Amélia, fula, mas numa voz que procura suave:
- Então que te divirtas…
E desliga.

Maria Amélia, contará, depois, a uma e outra amizade:
Aquela grande cabra, que nem havia nada que amaciasse a minha fúria naquela noite. Então, liga-me a dizer que encontrou a Gabriela com bilhetes para o concerto e deixa-me pendurada…
E, quando contar isto, há-de buscar um lenço na mala e não há-de encontrar.

Maria Amélia grita para o empregado a pedir a conta:
- Olhe, se faz favor…
E paga a cerveja que bebeu sabendo que não devia fazê-lo por causa do comprimido. Que se lixe, terá pensado.

Maria Amélia a ligar a TV ao pequeno-almoço, costume que tem depois que vive com a Irene. Está a dar o noticiário. Imagens de uma sala devorada por um forte incêndio. Que foi uma tragédia a noite passada, diz o pivot com voz embargada. Que ardeu o teatro todo.
Não houve sobreviventes na sala onde decorria o concerto - é assim que Maria Amélia sabe.

11 comentários:

Paula Raposo disse...

Excelente Maria de Fátima!!
Um conto fabuloso digo eu!
Muito beijos.

Li Ferreira Nhan disse...

Lindo, lindo, lindo!
Saboreei cada palavra...
beijo

wind disse...

Escritora, fogo!
Que fim!:)
Genial prosa:)
Como sempre, as tuas descrições, são geniais:)
Beijos

LUA DE LOBOS disse...

humor ácido mas agri doce também :)
xi
maria de são pedro

Maria Clarinda disse...

Mais um conto maravilhoso!Jocas gordas

Benó disse...

Uma história, que bem podia ser veridica, contada bem ao jeito MF.
Boa semana.

Sandra disse...

Quanto a tarefa cumprida do bloggincana, não achei??
volto depois.
Como é bom conhecer novos amigos. Eu só pude postar hoje. Mas sei o quanto é grande este momento e siginificativo para todos.
Aprendemos muito, uns com os outros.

Este mês a blogGincana nos proporcionou, momentos muitos inteligentes. Principalmente, porque aprendemos muito um com os outros. Eu também gostei muito da minha postagem...
Venha conferi quem foi o blog felizardo por mim...
http://sandrarandrade7.blogspot.com/

Com muito carinho
Sandra

Anónimo disse...

Maria de Fátima,

não entendi o que me pede por e-mail!
A única coisa que noto é que deu por concluida sua TAREFA de SETEMBRO, inscrevendo-se nas TAREFAS CONCLUIDAS de Outubro!
É isso?
Quanto as inscrições NADA posso fazer. E o melhor que faz é postar desde logo as TAREFAS de OUTUBRO, e TUDO esta resolvido!

Bjs

Jorge Pinheiro disse...

Boa história. Bem escrita e empolgante.

Helena Teixeira disse...

Esplêndido Conto.Escrita leve e de fácil leitura,convida a querer-mos mais.
Ah,deixo aqui um convite:Blogagem de Novembro da Aldeia! O tema é "O Meu Magusto".Participe,basta enviar 1 texto com máximo 25 linhas e 1 foto para aminhaldeia@sapo.pt até dia 8 de Novembro.

Jocas gordas
Lena

Makejeite disse...

Continua a ser um regalo vir aqui ler-te.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein