Confrange-me.
Aperta-se-me uma zona de mim que nem localizo.
Diria, se não fosse corriqueiro, e eu soubesse dela, que me dói a alma.
Mas retiro.
Digo antes que me dói um local de mim que se indefine.
Nem é zona do corpo, mas se sente como se eu fosse nadando em profundidade – o meu peso aliviado por via da impulsão e a pressão martirizando as partes finas como o tímpano e o hímen se ainda existisse.
O que me provoca este incómodo é um ror de coisas como dou de exemplo as que escrevo abaixo.
Mas agora terei que ir tratar do peixe: tirá-lo do gelo, colocá-lo em caixa onde fique com um aspergir de flor de sal, até que venha a hora do almoço.
Aperta-se-me uma zona de mim que nem localizo.
Diria, se não fosse corriqueiro, e eu soubesse dela, que me dói a alma.
Mas retiro.
Digo antes que me dói um local de mim que se indefine.
Nem é zona do corpo, mas se sente como se eu fosse nadando em profundidade – o meu peso aliviado por via da impulsão e a pressão martirizando as partes finas como o tímpano e o hímen se ainda existisse.
O que me provoca este incómodo é um ror de coisas como dou de exemplo as que escrevo abaixo.
Mas agora terei que ir tratar do peixe: tirá-lo do gelo, colocá-lo em caixa onde fique com um aspergir de flor de sal, até que venha a hora do almoço.
Eu volto. Virei para descrever este meu sentimento, pois que é disso que se trata quando digo:
Confrange-me.
Um sentimento que nem é estranheza e nem medo, que me inunda se vejo no jornal corpos pejados de metais e recobertos de desenhos, tal qual o corpo fosse uma tela de expor. Uma coisa de tirar e colocar de novo, a pele da gente.
E dá-me esse sentimento se oiço a mãe, a própria, burguesa ou não, que interessa se ela é ou não da classe média: uma mãe sentada no restaurante ou no poial de vão de escada, conversando, lastimando da vida ou constatando apenas:
- O meu filho, depila o corpo todo. Dezoito anos de pelos negros, que as namoradas e amigas dizem: metes nojo com tanto pelo espalhado pelo corpo.
É confranger, sim, o verbo certo.
Mas eu boquiaberto e esbugalho os olhos por muito pouco. Dizem isso de mim. Todos.
É ao abrir o jornal, mais do que a televisão, que aí nem tenho tempo para ter sentimento, que é tudo rápido e, se me descuido, estou imiscuída nas cenas como se fosse um deles. A Televisão é o maior castrante da mente. Invenção do demo que o homem utiliza como se fosse ele: o mafarrico matando o poder maior que nos foi dado: o pensamento. Dela eu me confranjo, e muito.
Confrange-me.
Um sentimento que nem é estranheza e nem medo, que me inunda se vejo no jornal corpos pejados de metais e recobertos de desenhos, tal qual o corpo fosse uma tela de expor. Uma coisa de tirar e colocar de novo, a pele da gente.
E dá-me esse sentimento se oiço a mãe, a própria, burguesa ou não, que interessa se ela é ou não da classe média: uma mãe sentada no restaurante ou no poial de vão de escada, conversando, lastimando da vida ou constatando apenas:
- O meu filho, depila o corpo todo. Dezoito anos de pelos negros, que as namoradas e amigas dizem: metes nojo com tanto pelo espalhado pelo corpo.
É confranger, sim, o verbo certo.
Mas eu boquiaberto e esbugalho os olhos por muito pouco. Dizem isso de mim. Todos.
É ao abrir o jornal, mais do que a televisão, que aí nem tenho tempo para ter sentimento, que é tudo rápido e, se me descuido, estou imiscuída nas cenas como se fosse um deles. A Televisão é o maior castrante da mente. Invenção do demo que o homem utiliza como se fosse ele: o mafarrico matando o poder maior que nos foi dado: o pensamento. Dela eu me confranjo, e muito.
Abro pois o jornal, quase um metro entre um braço e outro, e estico ainda mais para que veja bem cada cabeçalho e mais as caixas de letras muito miúdas.
Eu a ler e a crescer-me o sentimento de estar a mais por este mundo.
Peça solta da engrenagem.
Parafuso perdido.
Molinha que nem entra mais no sítio.
Eu a tentar respirar num mar profundo e este peso imenso sobre o peito. Eu sem ar que me valha, eu dizendo:
É confrangedor que haja disto, assim, pelo meu mundo.
E fecho os olhos para não sentir o sal que adensa no mar aonde me escorrego, aprisionada por laterais, traseira e frente, eu a tentar não ouvir as vozes anunciando mais um ror de marcas, e aquele gel para o cabelo e o novíssimo telemóvel com outras, mais, funções. E muitos DVD's. E no hipermercado, num dos muitos que há em cada pequenina cidade, entra mais uma encomenda de frango: frangos fresquinhos, acabadinhos de vir do aviário onde se criam como se fossem acessórios para máquina. Frangos e perus e coelhos: também perdizes e patinhos. Animais criados em série para alimentar o mundo. E tomates e tudo o mais para sopas e saladas, que nem é já esperada a chuva que regue, ou que venha seca: crescem envidraçados com a temperatura que simule a época.
E a minha traqueia e os mais pequenos alvéolos rebentarão se continuo a pensar deste modo de cada vez que leio o cabeçalho, se deixo que ele me diga mais do que simplesmente está escrito: a notícia do que aconteceu, sem análises que não sejam as bastantes. Assalto, atentado homicida, estupro, assassínio, desastre, guerra, guerra, apoio a mutilados, conferência contra a fome, conferência pela paz. Refugiados. Campos deles. Mais um comissário a visitar o terreno. Cultivo de papoilas em larga escala. Passador de droga preso numa rua de Lisboa. Uma fila de desempregados aguardando que os chamem. Para obra, para trolha, para caregar uns sacos:
- Tu e tu e tu.
Ficam os outros aguardando, o coração aos pulos e a barriga a encolher-se. Um deles tem uma pistola.
No jornal da tarde posso ser eu a vítima do assalto.
E as fotos. Os jornais são profusos. Ângulos dignos de uma exposição:
Um matadouro de reses. Na página seguinte, a foto ensanguentada de um homem estuporado por torturadores. Sangue igual de um lado e do outro.
Eu a ler e a crescer-me o sentimento de estar a mais por este mundo.
Peça solta da engrenagem.
Parafuso perdido.
Molinha que nem entra mais no sítio.
Eu a tentar respirar num mar profundo e este peso imenso sobre o peito. Eu sem ar que me valha, eu dizendo:
É confrangedor que haja disto, assim, pelo meu mundo.
E fecho os olhos para não sentir o sal que adensa no mar aonde me escorrego, aprisionada por laterais, traseira e frente, eu a tentar não ouvir as vozes anunciando mais um ror de marcas, e aquele gel para o cabelo e o novíssimo telemóvel com outras, mais, funções. E muitos DVD's. E no hipermercado, num dos muitos que há em cada pequenina cidade, entra mais uma encomenda de frango: frangos fresquinhos, acabadinhos de vir do aviário onde se criam como se fossem acessórios para máquina. Frangos e perus e coelhos: também perdizes e patinhos. Animais criados em série para alimentar o mundo. E tomates e tudo o mais para sopas e saladas, que nem é já esperada a chuva que regue, ou que venha seca: crescem envidraçados com a temperatura que simule a época.
E a minha traqueia e os mais pequenos alvéolos rebentarão se continuo a pensar deste modo de cada vez que leio o cabeçalho, se deixo que ele me diga mais do que simplesmente está escrito: a notícia do que aconteceu, sem análises que não sejam as bastantes. Assalto, atentado homicida, estupro, assassínio, desastre, guerra, guerra, apoio a mutilados, conferência contra a fome, conferência pela paz. Refugiados. Campos deles. Mais um comissário a visitar o terreno. Cultivo de papoilas em larga escala. Passador de droga preso numa rua de Lisboa. Uma fila de desempregados aguardando que os chamem. Para obra, para trolha, para caregar uns sacos:
- Tu e tu e tu.
Ficam os outros aguardando, o coração aos pulos e a barriga a encolher-se. Um deles tem uma pistola.
No jornal da tarde posso ser eu a vítima do assalto.
E as fotos. Os jornais são profusos. Ângulos dignos de uma exposição:
Um matadouro de reses. Na página seguinte, a foto ensanguentada de um homem estuporado por torturadores. Sangue igual de um lado e do outro.
Amanhã ouvir-me-ás pedir, no talho:
- Pese-me dois quilos de rosbife, Senhor Sousa
Sousa que, descobrirei um destes dias, é dealer, que o negócio da carne não sustenta a estadia dos filhos na universidade e é absolutamente necessário que os filhos estudem para doutores, dizem também as páginas dos jornais que o Fernandinho cortou os pulsos por não ter a nota para entrar. E eu a pensar que aquela criatura com um dois vírgula oito a matemática dava um excelente bailarino.
- Pese-me dois quilos de rosbife, Senhor Sousa
Sousa que, descobrirei um destes dias, é dealer, que o negócio da carne não sustenta a estadia dos filhos na universidade e é absolutamente necessário que os filhos estudem para doutores, dizem também as páginas dos jornais que o Fernandinho cortou os pulsos por não ter a nota para entrar. E eu a pensar que aquela criatura com um dois vírgula oito a matemática dava um excelente bailarino.
Confrange-me.
Não sei se será o verbo mais correcto.
Estou em crer que é fraco.
Talvez se eu disser apenas:
- Dói-me a alma.
- Dói-me a alma.
6 comentários:
Não me confrange a tua escrita. Sempre me causa admiração.
Um beijo.
Escritora, todas as realidades podres estão aqui bem retratadas.
Beijos
Um dois vírgula oito a Matemática.
Poderia ter sido dois zero vírgula nada a Dança, segundo o teu texto.
Acho que percebi onde te inspiraste para um texto tão bom.
E, sim! Escolheste o verbo adequado.
Eh pá, tá fixe. Mas eu já não sei se doí a alma, sei que doí qualquer coisa, mas não sei se é a alma, se é que sei o que isso é.
E a última Tertúlia??
É que é mesmo uma dôr de alma! Beijos.
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