sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

lamas


Clareava.
Nem era pela luz difusa que entrava pelo cortinado depois de atravessar a renda. Nem era pelo tom leitoso que escorria, de uma frincha estreita, a afagar o tapete e a esgueirar-se entre as pregas do lençol que lhe cobria o corpo.
Sabia que era chegada a madrugada, por uma certeza que a ia inundando, que a fazia remexer-se, entreabrir a boca e dar pequenos estalidos meio babosos; cerrar e abrir os olhos e puxar, com uma quase fúria, o lençol muito fino e leve para junto da orelha encolhendo-se no seu corpo até quase lamber os dois joelhos. Eram esses trejeitos de se deixar ficar mais um instante, de ronronar como cria mal nascendo, que lhe anunciavam a alva: a noite a ser engolida pelo dia seguinte. O quarto quase a ficar iluminado.
***

Fora uma noite grande. Ouvia-se dizer: Que começara numa chuva pingando. Que nem trovoada, nem o céu nublado. Que fora uma revoada, um silvar de vento levantando roupas em estendal e a chuva engrossando. Que a cada um nem sobrara o tempo de perceber de que estava morto. Ou talvez:os que ficaram em cima de um empedrado, preso por aquilo a que se diz milagre, olhando o escorrer das terras, o desabar das casas e das gentes. Os que olharam a sua morte ali rondando. Os que ficaram à espera. Os que talvez tenham rezado orações que nem sabiam. Os que viram a casa do Batista e a casa da Hermínia despenharem-se. Os que esperaram no seu lugar do milagre olhando a água que subia e a lama, as árvores, os telhados - tudo deslizando: uma chaminé, paredes em pedaços e até um piano; duas colheres de pau de mexer farinha, várias galinhas e um porco; e o senhor padre a tentar boiar, esbracejando. Os que terão ficado para desvendar o acontecido, esquecidos do que nem viram, que eram eles num segredo, num silêncio para que a morte os não percebesse.
***

Terá ouvido os ruídos de dentro do que julgou ser sonho. Talvez tenha pensado que fosse o rumor da cidade que despertava lá em baixo. Terá, como era seu costume, ronronado. Não se enroscou até tocar com a boca nos joelhos e nem repuxou, às orelhas, o lençol. Foi encontrada, de olhos esbugalhados, muito esticada no largo leito. Poderá ter-se apercebido de uma luz diversa naquele iniciar de dia. E nem terá sabido que era a cor da lama entrando pela renda e ela nuazinha a gritar um socorro que nem sabia ao que chamava e nem se era verdade ou sonho aquela água turva.
Nos jornais não sobrará lugar para dizerem o seu nome.
Maria do Rosário, solteira, vinte anos.
(- A amante do coronel - diriam muitos, se lhes fosse dado ler numa página de necrologia olhando a foto dela tirada no dia em que fizera exame.)
***

- Dia 24 de Dezembro.
Foi o que respondeu. E acrescentou, em tom mais baixo:
- Véspera de Natal.
A senhora, muito jovem, cheirava a perfume e sorriu-lhe.
- Boas Festas, Coronel!
Disse-lhe assim enquanto caminhava nuns sapatinhos encarnados de salto fino, brilhantes de verniz a contrastar com o chão molhado e a lama que também entrara pelas casas cá em baixo, na cidade. Um vermelho vivo a condizer com as riscas da manta que faziam ângulos sobre as costas do Coronel ainda mal enxutas. Nuas, que o Coronel sempre se deitava despido sobre os lençóis muito finos e brancos: a ventoinha zanzando lá no alto e ele babujando os lençóis com um suor que lhe pingava em todo o corpo. Bagos grados deslizando-lhe das dobras. Como lama. Como o pão molhado em leite morno que estava mastigando. Ele bebendo de uma caneca que lhe deram, respondera à pergunta colocada pela jovem senhora:
- Sabe que dia é hoje?
E aconchegara-se na manta, a sorver o reconforto da bebida, sem perceber o despropositado da indagação e da caneca que teimava em deslizar-lhe da mão. No bigode, ficavam-lhe, escorrendo, duas pingas brancas do leite que acabavam caindo sobre uma risca vermelha da manta.
***

Ismaíl Domingues Conceição. O Coronel Domingues, como era conhecido. Quatro vintenas de anos que ele foi arrastando para cima do telhado. Dirá que a morte o empurrava segredando-lhe: “ainda não é hoje”. E ele sentado lá no cimo, que a água amarela lhe entrara pelas rendas da janela e se misturara com os suores que lhe escorriam nas dobras. O Coronel dirá que ficou olhando a morte andando em volta. A água a descolar as terras e as casas e a despenhá-las pela ribanceira.
***
O sol brilhou. Uma rodela amarela emoldurada num céu sem nuvens, apenas esbatido o azul numa neblina muito ténue. Nem pinga de chuva. Nada que explicasse as casas e os telhados e os haveres. Cartas de um baralho: copas, ases, reis, paus, deixados num desarrumo no jogo avinhado de alguns deuses. Brilhou um sol muito amarelo a apressar o apodrecer dos corpos. Um moleque abraçado ao gato. Uma mulher em camisa adivinhada nos preliminares do que seria uma longa noite. Mortos embolados em lama, de olhos muito abertos. Tão nus quanto Ismaíl Domingues Conceição. O Coronel Domingues, a beber leite morno enrolado numa manta com riscas encarnadas a fazerem ângulos nos dobrados do corpo.
Havia os vivos e os salvos.
Nem a igreja, já quase só oráculo de dias consagrados, fora deixada ilesa: o santo seu patrono, boiava, desprendido do altar, numa correnteza amarela, entre dois carneiros e uma bicicleta sem selim nem roda da frente.
E morrera o padre.
Quem o disse, alto, foi uma mulher de vestido salpicado de florinhas amarelas, que falava com a senhora jovem, a dos sapatos encarnados com salto fininho. Disse assim:
- Morreu muita gente, sabe? Morreu o senhor padre Armando.
E interrogou com um pestanejar e o queixo apontado de soslaio para o Coronel que entornava o leite da caneca e da boca. Um gesto que era como se o que perguntasse, a dos sapatos vermelhos percebesse. E foi como tal que esta disse, num tom que desejou muito baixo:
- Essa...morreu na cama… nuazinha…
E olharam ambas o velho Coronel que limpava o bigode numa risca da manta. E riram-se de esguelha, de modo muito discreto, com uma pontinha de saberem que era o riso delas um riso mal feito.
***
Foi quando soou o grande grito. Um grito enorme salpicando pão mastigado em leite. O Coronel Domingues desenrolado da manta, nu, o sol enxugando-lhe restos de chuva e de suores.
- Maria do Rosáriooooooooo...
O Coronel levantando-se do torpor da noite e do leite morno. O Coronel a querer responder de um outro modo, a querer fazer ele perguntas e obter respostas.
E a senhora jovem dizendo para a outra um tudo nada mais velha, mas muito bem parecida:
- Ele esquece-se…
E nem uma nem a outra proferiu o nome.
(Maria do Rosário, vinte anos, morta de água e de lama na cama do amante…)

5 comentários:

Heduardo Kiesse disse...

ja vi que aqui temos... e se sentem as palavras à flor do romance, da verdadeira criação... hei-de regressar com mais vagar, pois é merecido - sem dúvida!

beijos e 2009 abraços - prósperos!

wind disse...

Escritora, excelente conto!
Beijos

CNS disse...

A tua escrita engole-nos.... Fabuloso!


um beijo

Mena G disse...

Bem... genial!!

Benó disse...

Gostei de ler as tuas LAMAS mesmo neste dia chuvoso e onde a chuva também faz lama.
Uma boa semana e um abraço.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein