domingo, 19 de outubro de 2008

sonho



Faz um tempo longo, assim um tempo de eu dizer ”eles eram ainda bem pequenos” (os meus filhos, claro!).
Eram tempos de mudança, assim uns tempos que só de pensar eu tenho a sensação se não terei, em vez de viver uma vida a sério, andado eu num sonho.
Tempos de muita esperança, de muitas certezas – tantas, que eu hoje penso se não seriam elas..., mas nem nisso me atenho, prefiro dizer que não senhor que era esperança mesmo e eram mesmo "certezas certas" e não devidas ao facto de eu ter então vinte, trinta anos.


Eram, eu não duvido que eram, os tempos de mudar o mundo, de endireitar de vez o que andava torto. Um tempo de futuros risonhos entre searas loiras e prados verdejantes e galinhas gordas e o leite e o mel e o mundo inteiro com caminhos longos, subindo montanhas ou descendo rios, atravessando oceanos ou desbravando céus.
Havia um mundo inteiro aberto à descoberta do homem novo, o irmão de todos lutando por cada um em cada povo, cada casa, cada comunidade, igreja, tabamca ou aldeia. Do Pólo Sul ao Pólo Norte e no Equador, seria o mundo percorrido por cada um, por cidades, aldeias, florestas e desertos.
Um sonho.
E no entanto, foi uma realidade o que eu vivi e foi nesse sonho que me fiz pessoa. Acreditando foi como eu cresci.
Nada demais, apenas que quando se sonha voa-se e as asas podem quebrar-se a um vento, e os pés nem sempre estão bem preparados para o frio e terra nua ou, ainda menos, para um alcatrão fervendo.
A gente aprende a acreditar, a confiar no outro, a esperar que a palavra, o olhar, a mão estendida, sejam um elo, uma formulação que liga cada um e disso se faz uma corrente indissolúvel.
Eu lá creio, que olhando uma pessoa com sinceridade, com doação, ela se me aparte, me agrida ou continue um acto, um pensamento, ela não se mude…
Ainda me custa, é isso, ainda não sei bem concebê-lo.
E por isso eu nem acredito em assaltante. É como se eu visse, em vendo noticiário, filme ficcionado: só imaginação.

Eu vivo neste mundo.
E este mundo é outro!
Este mundo não é o mundo que eu esperancei.
O mundo real, não veio do sonho que eu sonhei: é bem diverso!

Passados estes anos, além do que fosse sonho ou realidade, o mundo mudou tanto!
Não tem nem mais como ir por aí zanzando, solta numa camioneta, embolando na estrada feita velha tonta ou, que seja, dormindo em carruagem de comboio com a mala jogada sobre a rede. Nada disso.
Você não pode.

Não pode andar devagarinho pela rua do bairro vendo menino a brincar de pega-esconde e dando a ele batata frita ou gulodice ou roupa que o vista quando for de fazer frio.
Não pode, a menos que queira ser hipótese de notícia de jornal, abertura feia de noticiário.
Não pode mais ir em sossego tirando foto de gaivota naquele pedaço em que o rio contorna, por baixo da ponte, e tem lá até banquinho que, de não ser usado, criou limo.
Vai ver que, mais do que limo, lá tem pnta de cigarro, tem mijo e coisa que injecta e descarta e tem cheiro de gente que vai por lá a hora certa da madrugada. E nesse local, a cidade grita. Grita ao seu ouvido: “tem cuidado!!” quando você apenas foi para ver o rio daquele lado e olha e pensa “coitado!”. E a cidade grita, fica gritando: “esta mulher é doida! E acrescenta: "Olha que eles lhe roubam e a destratam a si, se for o caso!" E a cidade manda: "Sai daí criatura!”.
E nem é a cidade que lhe fala, mas o seu medo. Ele salta. A garganta seca e aquele que vem além, igual que nem você, querendo tirar foto, amarra-o num sentimento ignaro que você rejeita, mas não vence: a desconfiança.

Eu recuso. Eu não quero ele, eu não quero meu sonho por terra.

Desconfiança e medo, herança pesada do sonho que eu tive, este temor do outro é pesadelo vivo e mais que isso é sentimento que eu não me habituo de sentir e me dói de ver estampado contra mim na cara do outro.

Perdeu-se o passeio na rua estreita, enviesada por detrás da cidade, perdeu-se a boleia na estrada e o passeio por caminhos de serra e mato.
Perdeu-se o sorriso do companheiro de banco no cinema ou no metro.
Perdeu-se o “ai desculpe” depois do encontrão no passeio lotado, que o que te sai é um ar de esguelha reparando na mala, no cordão do pescoço, eu sei lá o que mais e nem vês a cara de quem apenas se colou pele na pele, num final de tarde de trabalho.

Um destes dias aconteceu-me ficar isenta do meu pé esquerdo. Quero eu dizer, torci-o num por acaso e deixei de o ter que me andasse. No meu jeito natural, ainda mais por uma manhã de Agosto na minha cidade, pedi que me ajudassem. Era um rapaz novo, bem posto, que nem de mim se aproximou, que nem abriu o rosto de um olhar que me dizia” eu desconfio ou não de ti, mulher de meia idade…”. E eu pedindo que me levasse o carrinho a arrumar e ele nem me perguntando se precisava mais. Ele nem disse palavra que eu ouvisse distantes os três metros a que passava, que ele manteve. Um homem desconfiado, era o que eu tinha à minha frente. Uma coisa horrível de se ver. Não quero armar-me em forte, mas talvez prefira mesmo o assaltante…
Como na outra manhã, em que dois meninos pelos doze anos, cabelos em madeixas amarelas no cabelo negro, ensaiavam o que pode ser um roubo em passando estes ensaios de ir de um a outro, em compras no supermercado, um que dava trela e o outro que tentava surripiar nem que fosse a moeda que, por um mal colocada, estivesse capaz de sair da ranhura. E eu que e os enviei para longe de meu olhar com modos de guerreio e mando, fiquei pensando que já nem posso confiar em criança, eu que vejo e leio notícia como se fossem telenovela, romance.


O meu sonho perde-se e nem é porque me fui entrando nos anos…

Eu nem me apercebo, eu olho sempre confiando, eu recuso o medo. Dizem que sou tonta que me tramo.

Pois seja.
Eu não aprendo o jeito. Eu não sei o como.

(no dia 15 assaltaram-me o carro na minha capital

e há um nada li por acaso Angústias urbanas da Giselle que mora no Rio)

5 comentários:

mac disse...

Ah? Também?...

Hélas!

Giselle Sato disse...

Muito bom Fátima,voce é surpreendente. Porque não postou esta cronica no SAM?
Você consegue costurar mil pedacinhos de estilos e compor a trama mais perfeita...teu estilo é primoroso e único.
Parabéns...

mfc disse...

Sonhamos e não paramos de sonhar... Até que um dia o sonho se encurta!
Mas até essa altura conseguimos "viver" e isso já foi muito bom.

wind disse...

Escritora está tal e qual a verdade nua e crua.
Excelente!
Beijos

Mena G disse...

Um bom desenho de uma realidade que ninguém deseja. Fugir-lhe também não há como.
Portanto, a única maneira é mesmo olhar de frente, confiando.
Não há outro jeito!
Bjs.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

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ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein