-Demasiado, sabe?
Demasiado louras, demasiado magras, demasiado burras.
Demasiado, sabe?
Isto que ele sempre falava.
E ela olhava-o de dentro do decote redondo, os seios fartos esmurrando dois mamilos assimétricos no cingido da blusa.
Olhava-lhe as duas pregas quando ele apertava os lábios para dizer, “burras”. Dois traços na carne. Quase um esconderijo.
Ela não ouvia que ele dizia:
- Nem se bronzeiam que temem o ardor do sol.
Ela desouvia-o daquelas continuadas falas.
Traçava, uma sobre a outra, as pernas desvestidas. Uma chinela soltava-se. Fazia-se um “plac” abafado no lajeado vermelho da varanda.
Era quando ele a olhava e lhe pedia, assim como um sem mais:
- Diga-me lá, vamos aqui ficar?
E ela olhava o verde pardo dos olhos dele. Precisaria de responder ou de calar?
Bastava que calasse. Mais essa tarde.
Dois metros abaixo, elas passavam demasiadas como ele lhas dizia.
Ela ajeitava no ombro a alça da blusa decotada em redondo. Retomava nos dois dedos do pé a chinela tombada. Dependurava o corpo na varanda. Saltava o muro de um dobrar de pernas. Acenava-lhe um “até logo”. Fugia-lhe pelo cinzento da estrada, pelo amarelado da areia, pelo deixar de ele a ver senão um ponto em castanho chocolate pincelado no branco da blusa e do calção. Ela no engolido da paisagem com o mar em fundo.
Na varanda fazia-se um esperar demasiado.
Depois ela voltava.
Negra pingando água. Morna ao fim da tarde.
Empurrava a cadeira. Ele aconchegado no cobertor de xadrez vermelho.
Hoje, três da madrugada e ainda lhe dissera: "Demasiado, sabe? Demasiado louras, demasiado magras, demasiado burras".
Mas nem no rosto se fizeram esconderijos no dizer da palavra.
Afagara-lhe com apenas dois dedos a carapinha despenteada naquela hora tão tarde.
Sobrou um silêncio negro. Sobrou dele um silêncio demasiado.
a despropósito
Que bem me soube ler esta Escrita intemporal - II
«O país perdeu a inteligência e a consciência moral.
Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os carácteres corrompidos.
A prática da vida tem por única direcção a conveniência.
Não há princípio que não seja desmentido.
Não há instituição que não seja escarnecida.
Ninguém se respeita.
Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos.
Ninguém crê na honestidade dos homens públicos.
Alguns agiotas felizes exploram.
A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia.
O povo está na miséria.
Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente.
O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências.
Diz-se por toda a parte: o país está perdido!»
in primeiro número de "As Farpas" 1871
4 comentários:
Coisas da «sôdade»! Mas o que é certo é que nunca encontrei cor à saudade.
Há escritas que nunca perdem a actualidade . Quando se fala em política e sentimentos não falha mesmo. É que o bicho homem muda mas não muda a sua essência.
Gostei de te ler. Repito-me.
Um beijo
Escritora como sempre uma bela prosa e quanto às Farpas é actualíssimo!
Beijos
desouvo-te atento
hehehehe...
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