sábado, 26 de janeiro de 2008

PAZ

Deste comentário
Vocês, mais parecem generais latinos com o uniforme cravado de medalhas e de condecorações, do que bloguistas. Que maravilha... A net é uma coisa "bestial"-E o concreto?
me discorreu o texto que se segue e dedico, por isso, assim como se fosse um prémio, ao meu conterrâneo Armindo que se aloja neste
blog.



Escreveu sempre.
Enfileirava as palavras em frases. Fazia-o e em quantidade.
Era vê-lo pelas tardes de papel encimado por uma esferográfica, de mais costume, uma Bic azul, que escorregava lesta pelas linhas. Escrevia sempre em papel pautado. Se calhava escrever em papel liso, descia-lhe cada frase como se suicidasse num abismo, ou como se escorresse para um qualquer esgoto. Era assim que ele via as suas palavras quando tentava, em vão, fazê-las paralelas à esquadria. Era numa sustida irritação, que o rapaz via, seus ditos morrendo-se no canto da folha que, a não mudar de linha, seria onde cairia cada letra que escrevia. Era por tal que sempre escrevia em folhas com linhas separadas entre si o espaço certo de uma letra grande, do braço eriçado de um tê pequeno ou de um bê escrito numa nostalgia de caligrafia escolar.

Sim, o rapaz escrevia.
Mas padecia o coitado de um mal de escrita. Digo eu que o lia por de cima do ombro. Digo eu que levei anos a tentar que percebesse que haviam outros mundos e nem era necessário que corresse à boleia o velho continente, ou o fizesse de combóio, ou passeasse desertos em camelo. Bastava que se ouvisse. Disse-lho em minutos e segundos acumulados em ano após ano. uma vida inteira. Ele que me ouvia, mas me desprezava como se eu fora um outro que não ele.

Vive hoje agastado. Vejo-o por aí tentando entender a letras de outros que lê, mas não percebe. As letras que despreza junto com quem as escreve porque lhes reconhece o enleio, mas sabe que ele perdeu o ensejo.
Roguei-lhe: escuta-te. Escuta-os. Não penses que o que te vai dentro é coisa diminuta: o mundo, a vida, as lutas do povo são fruto do Ser. Não acredites que é no por de fora que avalias a força do outro. Não entres em guerrilhas de dizeres. Não contes os teus feitos. Se os fazes, estão feitos. Não vendas cartilhas, nem doutrinas, nem queiras ver nas atitudes símbolos do que pretendes ou não desejas. Aceita, simplesmente. E se um dia te surpreenderes, agradece. Nada nesta vida é mais que a gente deslumbrar-se. E quando assim te falo, considera que se morreres de fome, de solidão ou dor, estás vivendo. Cala-te, pois. Não espalhes a notícia. Se viveres intenso estarás no campo de batalha e nele está um ror de gente.

Mas ele nem me ouvia. Era preto ou branco.
E era assim que, se escrevesse a eito, se unisse as palavras de um qualquer jeito, se por um acaso se surpreendesse com o que lhe saltava da folha, se não reconhecesse conto de enredo naquele desfilar de frases à sua frente, ali mesmo por debaixo do queixo, mesmo rente ao pulso que aguentava os redondos e rectos da caligrafia, se tal acontecesse: a coisa escrita não contar o doer do povo, a escravidão da vida, a desmesura do desgraçado, a solidão da mãe, a agrura das mãos esfriadas na mulher trabalhadora, o sangue escorrendo num aborto. Se tal se não desse, ele rasgava. Se não dissesse assim tal qual: Mariana chorava doída da porrada que o marido lhe dera depois dos copos na taberna que ele fora despedido nesse dia. Mariana chorava a filha prenha do patrão e a vergonha. Abotoou a bata e compôs o lenço em direcção ao portão da fábrica debaixo do tecto que fazia a sirene sobre a cidade adormecida.
Era preciso que narrasse. A mama estava inchada e com sangue quando lha retirou de mansinho da boca, o leite escorrendo em postas que ela felizmente tinha sempre comida para mais aquela quinta boca que lhe surgira nesse Dezembro gelado e a sirene apitando sobre o frio de Janeiro acabavam de soar na torre quatro da madrugada que era hora em que ele pedia mamada e o marido dormia que fizera o turno da noite os dois mais velhos já estavam na mitra e outros dois dormiam aos pés da cama que sempre arrefeciam menos que agora era apenas
e etc. e tal que o que eu escrevo nem é sequer o que ele escrevia que nele eram ainda mais palavras pegadas com palavras sem mais descritos e, na demasia das vezes, sem nem estórias, sem nem gentes. Escritos apenas dizendo, apelando, confrontando. Escritos ditando. Eu diria que demasiadas vezes eram escritos sem nem coração nem estória e nem nome de gente.
Dizia eu que se lhe acontecesse um deixar ele soltar-se a palavra, como lhe aconteceu naquela tarde em que a amiga lhe apareceu desfeita de cabelos e vestido, a cara afogueada num rubor de adolescente e ele percebeu que mais que tudo ele a amava e a nenhuma outra neste mundo e ele escreveu até direito em folha sem linhas que eram folhas de papel de embrulho as que ali tinha e eu fiquei pasmado de o ver soltar uma escrita de dizeres numa alegria e tristeza que se misturavam nas palavras limpas de outors cuidados que não fosse serem elas verdadeiras.
Mas ele rasgou-as. Riscou primeiro cada palavra. Uma a uma, com a bic azul. Auto censura. Foi que eu disse então. Nem me ouviu.
E nunca mais deixou que se surpreendesse como esteve quase a acontecer-lhe naquele dia, muito ano depois, quando o filho mais novo lhe disse que o neto acabara de nascer. Ou quando soube que na estrada, entre uma fila em cadeia de carros vindos de França sob nevoeiro, morrera aquele amigo de andanças no partido. E nem quando lhe morreu de velha a senhora sua mãe.

Nem ele escreveu em prosa solta (n)aquela madrugada azul que (lhe) foi Abril.

E que eu o avisei: um dia não vais entender e vais criticar e vais ser venenoso e tudo porque não deixas ver mais do que diz a cartilha, quando ele há tantas formas de enfileirar as letras, de cruzar as palavras, de dizer as coisas.
Eu que avisei o moço que um dia seria velho e diria coisas como se fossem veneno.

E escreveu. E custa-me que eu sei que não é por mal, apenas que ele não entende. Nem se dá ao trabalho. E pode.
Se eu acreditasse, diria. Que Deus o guarde e a Senhora de Fátima! diria eu, mas nisso eu como ele não creio.


7 comentários:

éf disse...

sublime!
ou, para não parecer pretensioso, PORREIRO!

Mena G disse...

Sublime, sim!
E perfumado com sentidos.
Que se "endireitem" frases feitas por letras em linhas tortas!
Cruzamo-nos todos no virar da
página...

(Café? Café?? Café???)

bj.

jorge esteves disse...

Juntar palavras, coisa tão simples, pode dar nisto: coisa tão bonita!...

abraço!

wind disse...

Escritora, faço-te a vénia:)
Magnífico!
Até estou sem mais palavras:)
Beijos

ND disse...

Fica assim provado que nunca se deve dizer de uma Senhora que a mesma não tem coragem.

O caracol da Adelina disse...

Estas palavras não são comentário ao teu post, mas a resposta ao teu - se eu não acho feio -!?
Na verdade não é bonito, mas que posso eu fazer se alguns desses bloguistas não me entendem?
Toda a matéria que aí expus, só fere a sensibilidade de mentes atrofiadas.
Há tanta coisa feia em Lagos, e vocês só falam das bonitas. A hipocrisia de alguns ultrapassa os limites do tolerável. Fátima, tu não os conheces como eu. O egocentrismo, o egoísmo, a super inteligência, o fingimento, e até o oportunismo, aquece nesse banho-maria. Bom, já vai longo.
Apaguei o post em atenção à tua pessoa.
Um abraço.
Armindo

Mateso disse...

Acho que as minhas palavras se enfilariam em frases tal como as do personagem.
Apenas excelente.
Bj.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

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ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein