sexta-feira, 2 de novembro de 2007

ásai

Jogou-o para trás como se faz a um lençol.
Como se joga, sem nele atentar, o pano que nos cobre o descanso.
Macio é o que se pensa dele e branco é cor que lhe associamos apesar da moda. De serem eles de flores e aos quadrados e até com reproduções de quadros que deve parecer, a quem neles se dorme, que. Adiante.
Lençol é pano branco e macio e quer-se largo o quanto para que caibamos juntos, se for o caso, ou durmamos, de qualquer modo, com conforto. E comprido. O suficiente. Deve ele ter, de cima abaixo, o comprimento que torne possível que te tapes em noite de medonho pesadelo sob o lençol. Singelo, que não falamos aqui do que sobre ele colocas se forem as noites de frio e não, como ao momento as concebo, noites de Verão, noites de calma, mansas e dolentes. Um lençol tem que proteger-te de todo e qualquer flagelo, como se fora ele uma parede.
Um pano de lençol que se faça, assim como em criança, um abrigo, uma mansão de gelo ou uma cabana aninhada em montanha.
Eram os tempos que já esqueceste.
Brincavas na cama de teus pais ainda nem eram raiadas as madrugadas, naqueles domingos em que as manhãs se estendiam pelas tardes e tu fazias, daqueles lençóis enormes, o palco dos teus viveres.

Lençóis. Associava-os eu a algo, ali no cimo desta página. Um pano jogado sem tino, sem que fosse pensado. E é certo que tanto o fazemos. Desfeitos, enrolados, servindo de tapando envergonhadas partes, o lençol é pano que se esquece.
Vermelho tantas vezes de sangues diversos. Translúcido de sémenes. Multicor de vomitados. Exala também odores amoniacais. Xixis de crianças e mijo de velhos.
E é no lençol que se concebe.
Eu vos garanto que foi assim antes que houvessem marquesas e, mesmo nessas, o lençol, um tanto desatentado, lá se encontra. Mas perdeu o destaque que lhe era dado no tempo em que, dobrado em várias partes, envolvia grossas toalhas e era colocado, com desvelos, por debaixo das nádegas da mulher em trabalho de parto. Lençol preparado para receber, depois do feto se esganar em berros, os líquidos que escorriam da contenda e a placenta.
E faço aqui um desvio. Não resisto a perder um tempo com esta massa vermelha, quase negra. Também a ela a jogam borda fora sem o respeito que julgo ela merece, que mais não seja, por ter sido a conviva, dia a dia, de cada um da gente. Nem uma fotografia, nem um sinal da cruz ela merece. O mesmo não fazemos com aquele bocadito de tripa que em breve se torna numa coisa seca, sem graça, que pode até tornar-se num perigo pois, por descuido, num calhar, podemos confundi-la com relíquia de algum santo trazida por tia devota de um lugar remoto. Mas, ao menos, guardamos o que fechou a tampa do nosso corpo. O nosso tão estimado umbigo. Guardávamos. Que até mesmo isso caiu em desuso.

Oh! deuses, senhores, o que aqui vai! Tinha eu em mente, apenas falar do Dimas, um amigo que estimo. Dizer que ele pescava uma destas tardes já fazia frio e era domingo e ele saíra para uma pesca à linha no bote que comprou de meias com o primo Henrique. Queria eu dizer que ele jogou pela borda fora um peixe que não tinha a medida convencionada pelas normas. Queria dizer-vos como me comovo com este homem que decerto atirou com a roupa da cama para trás das costa pela madrugada antes de enfiar umas calças e o restante que o proteja de uma gripe que já vai sendo quase Inverno e antes que o sol nasça, o frio corta. O Dimas.
O Dimas, nascido numa aldeia entalada entre um estreito de ria e uma língua de areia antes que possa ele arrimar a ondas de mar encapelado. Um homem do mar desde muito novo. Mas podia ser outro. O certo é que foi o meu amigo Dimas que atirou o peixe e deve ter pensado: "benditos os tempos em que se pescasse mais uma meia dúzia com este formato, teria o almoço e dos gaiatos, da mulher e da sogra, assegurado."
Mas, o que mais me espantou, foi quando soube que o meu amigo Dimas, nem pensou. Num gesto semelhante ao que fez ainda há um momento, de atirar o lençol, sem pensar nem um pouco, assim tal e qual, jogou ele, borda fora do barco, o belo peixe. Assimilou a lei o meu caro amigo.

E penso que isto deve ter a sua lógica.
Eu não a encontro, mas deve ela estar em qualquer esconso.
E amedronto-me. Me receio.

Um destes dias ainda nos entra pelo quarto adentro essa ásai, ou sei lá como é, a investigar cada um dos lençóis em que descansamos .
Averiguar as dimensões do tal de pano que atiramos sem nem pensar. O lençol que, apesar de tal, tanto estimamos.

Lembrei-me disto mal ouvi o meu amigo Dimas dizendo à mulher: “ele havia peixe, Rosinha, mas não tinha as dimensões da cê é é”.

6 comentários:

Ana Paula Sena disse...

Tão giro, o teu texto! Adorei o teu amigo Dimas! É tão bom existir gente assim! Com quem conversar, a quem escutar por dentro da simplicidade...
Beijinhos!
Bom domingo.
A.P.

Gi disse...

E andar às volta neles? Nos lencóis quero eu dizer por isso estou aqui a esta hora. São brancos , imaculados, esticados antes de me deitar neles :) Passei agora pelo teu vale de lençóis e lembrei-me do cheiro a alfazema que existia no armário onde a minha avó os guardava. Também aqueles não tinham as medidas convencionadas. As camas eram mais pequenas na altura.
E tudo isto por causa do Dimas. Só por me fazer viajar até ao passado , já gosto dele . E de ti.
O umbigo dos filhotes e do neto ainda os guardo. O me foi dado de comer a um galo. para ficar com boa voz (diziam) parece que a vontade foi cumprida, só não foi comprida ... mas não se pode ter tudo :)

beijos

Mateso disse...

Eram alvos, de cheiro a sabão e sol. As rendas roçavam as faces numa aspereza de recordação. Eram os lençóis do passado. Hoje são multicolores, macios de fibras redondas. Não têm o cheiro de ar mas... é a história de vidas que nem a ásai pode colocar em padrões pré-estipulados de viveres não tidos.
Óptimo como sempre.
Beijo.

Anónimo disse...

este texto não tem o tamanho regulamentar

PostScriptum disse...

Publica, publica. É crime guardares tudo isto para ti.
Beijo

wind disse...

Escritora, só tu para fazeres um espectacular conto sobre o lençol:)
Algo que se usa e faz todos os dias e ninguém pensa.
Revelas observação macro, se é que isto existe e imaginação para a escreveres.lol.
Parabéns por isso:)
Beijos

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
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