sábado, 24 de novembro de 2007

Maria Clara

Olha o canto da gaveta.
Dois montinhos minúsculos de cotão. Umas bolinhas de pó acumulado pelo estado de fechada desde que, no Natal passado, deixou, entre duas fronhas, um pedaço de papel de seda que alisou em cima da mesa da sala. Papel que embrulhava um tecido bordado a ponto de cruz muito miúdo. Bordado em verdes variados sobre um fundo negro, o nome dela, Maria Alice.
Olha o canto da gaveta. Olha de espanto. Esquece o papel de seda com rosinhas miúdas num relevo suave. Papel que guardara como guardava muito.
- Morra uma da gente, ficam esses pequenos nadas que nos entrelaçavam, dizia Maria Clara. Sempre lho dissera.
Debruça-se na gaveta. Olha o pedaço de vida sentado nas quatro patas. Uma coisa pequena demais para que se note diferente dos rolinhos de pó.
- Uma criatura de deus, diria Maria Clara, se visse.
Dois olhos muito abertos, muito de espanto.
Muito de medo? interrogou-se Alice antes de se decidir. Abrir mais a gaveta e provocar a fuga do animalzinho. Perder-se o bicho pela casa. Talvez se o abatesse. Bastava um dedo. Esmagá-lo. Isto foi hipótese que Alice nem pensou, diz-nos o narrador. Em vez, Alice relembrada do papel com rosas, apanhou uma ponta que sobrava de entre as duas fronhas. Envolveu nele aquele pedaço de vida que esperneou entre os seus dedos como se fosse uma coceira.
A gaveta entreaberta mostra roupa de cama. Fronhas ou toalhas. Não se percebe dado o ângulo em que o narrador olha por decisão que toma de não contar o real conteúdo da gaveta. Nem se há, num outro recanto, uns demais animais. A mãe e outras crias, seria o natural. Mas isso fica cada um de nós pensando. No que diz o narrador, nem sabemos se estão intactos os lençóis, as toalhas, talvez linhos e adamascados de colchas raras. Quem sabe se papéis alisando de amarrotados de outras prendas em outros natais ou festas que tais. Talvez ratados. Não sabemos. Não nos fornece o narrador mais conhecimento do que a existência de duas fronhas aninhando um papel de seda, dois pedaços de pó criado pelo tempo e, para grande espanto da personagem, um rato sentado sobre as patas. Um rato que olha para Alice com o igual espanto com que o olha ela, segurando com a mão direita o puxador da gaveta. Apoia uma mão magra, lisa de anéis, recortada de veias azuis. Segura o puxador num sem saber. O puxador de loiça debruado a dourado, enfeita a cómoda no quarto em que dormiam ela e Maria Clara desde há mais de dezoito anos. Uma vida. Um desenrolar de pequenos nadas.
- Coisas sem nenhuma importância fazem uma vida grande, dizia sempre a Maria Clara.
Enorme a vida de cada uma e das duas. E agora, aquele rato a exigir decide-te, com ar de quem não conheceu luz desde que a mãe o pariu, de junto com quatro crias, ao fundo da gaveta de cima da cómoda do quarto. E a luz tanto o ofusca. Luz dos lagos, espelhos, o rato não sabe, não tem vocabulário. Diz-nos o narrador que é nos olhos de Alice que se hipnotiza o pequeno bicho. Uns olhos transparentes de muitos chorares. Dois olhos verdes que o ratito só vira parecidos na mãe quando o lambera trazido a este mundo que era o espaço largo entre os panos guardados de um ano a outro ano sem que os precisassem. Panos, digo eu, que o narrador não esclarece, de dias de festa. Ou recordações.
Alice espantada do que sente, envolve o animal no papel de seda pintalgado a rosas em relevo.
Saberemos, umas páginas depois, que na altura em que Alice abre a gaveta, Maria Clara morria de doença grave. Coisas tristes dos contos que também às vezes se dão na vida das pessoas, mesmo pessoas, onde há ratos, mesmo ratos.
Alice pega o ratito com o papel fininho, transparente ao ponto de deixar que veja, à luz que enche o quarto amplo, um corpo que não tem mais que dois centímetros, cinzento, quase branco, e dois olhos redondos de um negro que se confunde com cada uma das rosas do papel, não fora se moverem de roda, assim como num espanto.
Ou seria medo? pergunta-se Alice colocando o rato no interior de uma gaiola onde, em tempos remotos, Maria Clara criara uns bicharocos brancos que rodavam para cima e para baixo.
- O dia todo rodando de um modo tremendamente estúpido, dizia Alice que detestava ratos.
Alice descendo um lance de vinte degraus em madeira negra, bem tratada. Atravessando um corredor forrado de aguarelas e óleos e desenhos a carvão e pastel: animais variados e dunas amplas e os quadris e as pernas e a cara e o nariz e os seios em muitas posições, de Alice; quadros que Maria Clara pintava nos intervalos de ser ela chefe de secretaria numa repartição esconsa e fria ao largo do caldas numa cidade capital de um país que elas amavam e se escorria em gentes descoloridas como era o primo Gabriel que se guindara a ministro das finanças, ele que fora, em moço, avaro de qualidades e não mudara como nos diz, peremptório, o narrador.
Alice admirando-se de se lembrar do primo naquele percurso de atravessar a casa transportando o rato enrolado no papel de seda.
Alice percorrendo a varanda coberta de buganvília amarela antes de entrar na porta envidraçada do atelier de Maria Clara onde um espanta espíritos de estrelinhas de vidro e meias luas, tilintou antes que Alice descobrisse a gaiola verde com a roda.
Um país de merda, pensava, enquanto colocava o rato na gaiola.
Era o que dizia Maria Clara que decerto largaria qualquer pensamento mal visse aquele cortejo que eram Alice e o rato embrulhado em papel de seda.
Ela haveria de rir em estouvada gargalhada, estridente, exagerada. Ela deixaria os pincéis escorrendo verdes e amarelos e outros matizados, para se debruçar encantada. Saltitando em volta. Querendo.
- Mostra, dá-mo, era o que diria Maria Clara.
Mas isso não era hoje.
Que Maria Clara se morria nesse mesmo momento, no instante preciso em que Alice decidiu levar o ratinho para a gaiola verde. Assim o diz o narrador.
E, no epílogo, conta-nos: de Maria Clara não houve funeral. Alice cremou-a entre a buganvília e a faixa de terreno em amarelo argila que desce num declive leve sobre o mar.
Deixou que as cinzas voassem ao jeito em que o vento soprou.
É o que conta o narrador.
Não me compete sequer imaginar como resgatou o corpo. Pensem, se vos aprouver. Alice na calada da noite, quando os mortos ficam sós entre as paredes mudas de uma sala aonde aguardam, sozinhos ou com outro por ali abandonado de amigos e família, tremendo o medo da descida, das pás de terra caindo uma duas e mais uma e duas e o espectáculo de ver chorando gentes que nem o gostavam, que nem conhecia. E o silêncio.
- Não deixes que me levem. Quero ficar por aí ao vento, assim falava Maria Clara.
Alice ouvindo-a num recordado, pega-a ao colo e trá-la para casa.
Rega-a com perfume e óleos. Queima-a. E as chamas iluminam as lajes de argila e a água que se fez parada nesse dia dois do mês de Dezembro.
O narrador acaba.
Vieram buscá-la. Algemaram-lhe as mãos que pareciam rios desenhados nos mapas.
Alice ouviu o estampido da pistola quando olhava a buganvília amarela balançando no vento da madrugada que ainda nem se abrira. E disse o guarda com uns olhos sem brilho em cara de menino.
- O rato não se calava guinchando.
E atirou o guarda, para longe, uma gaiola verde.

No ar da madrugada esvoaçou um papel de seda.
No céu que se abria em cores de alva, voaram rosas negras.

9 comentários:

wind disse...

Escritora, para mim um dos teus melhores contos "negros".
Os pormenores tão detalhados e minuciosos, muita vez ao longo do texto, a descrição psicológica da personagem e a sua relação com o desgraçado do ratito, estão sublimes:)
Só não gostei da morte no dia 2 porque é quando faço anos.;)
Quando é que um editor te contacta???:)
beijos

Gi disse...

O ratito é feito personagem central mas é o amor pela Maria Clara que está subjacente a todos os actos. Até o final.
Repito-me ao dizer que gostei, não te poupas a pormenores e tens sempre um detalhe de cor que me enche os olhos. Tantos pequenos nadas que enchem uma vida e quando chegam ao fim são mesmo muito pouco , quase nada quando se fica só.

Um beijo daqueles.

PostScriptum disse...

Voo num balão de ar quente sempre que te leio.
Beijos.

éf disse...

então, e o livro é para quando?

Mateso disse...

O rato de olhos negros escondido na gaveta de panos alvos, medo de olhos mansos em forma de ratito. O detalhe da galeria de rostos sem almas comparada á tribuna que nos governa, sobressaindo algures o personagem apagado de um ministro...
Depois o sacríficio de uma vida devotada a outrém..
Parabéns uma vez mais.
Bj.

Gi disse...

Tu,

pois,

quem houvera de ser? :)

beijos

ContorNUS disse...

Gostei de te ler... voltarei ;)

Gi disse...

Um beijo e bom fim de semana ó princesa desaparecida.

Leonor C.. disse...

Sim, um ratinho é uma criatura de Deus. Tão pequeno mas que provoca tanto pânico!

Gostei do teu blogue.

Bjs.

HOJE E AMANHÃ

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

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ai meu Abril, meu Abril...




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"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein