terça-feira, 16 de outubro de 2007

palavras em recortes

Era uma evidência. O corpo dela se mudando como a bola de farinha e água que moldara nos dias de festa. Antes. Os filhos cheirizando pela casa.
Era uma evidência. O corpo dela salientado em dobras, engulhos de ossos, peles desenhando-se em engelhos. Nem mais amassava que nem faria direita a cruz de levedar.
Treme-me o cansaço.
Assim se dizia, sentada na janela de onde a rua ia sem lhe medir, a ela, o passo escorregado. Um passo como se ela desse de fazer brilho no soalho. Um pé demorando de cruzar o outro pé. Demorando-lhe o corpo inteiro numa ida. Doendo-lhe o retorno.
Pensou pois nessa tarde: fico.
E demorou-se.
Passou o homenzinho do bigode trazendo o cão pela trela. Um cão pequeno. Um cão que defecava forte em cima dos narcisos que teimavam em amarelar o cimento que era o prédio da frente.
Todo cimento e ferro. Valia-lhe o vidro espalhado nas paredes que nem se percebia se eram janelas e aonde.
Depois passou a menina do casaco coçado. Uma marca cara estampada ainda entre as omoplatas. Doado por senhoras, ou roubado. Não parece que roubasse, a pequena de lábios sempre pintados de encarnado. Simplesmente, usou-o muitos anos depois daquele Inverno em que o vestiu novinho. Recebera o primeiro ordenado.
A luz do dia esmaecia e sentiu um frio meiguinho afagá-la. Primeiro um ombro, e depois o meio das pernas onde a saia fina, que o Verão ainda nem se fora de todo, deixava ver as meias de um doirado igual ao que seria a sua cor de começo de Outono. Antes.
Deixou-se escorregar e fechou a vidraça. Tapou o ar de fora. Separou-se da rua. Restou-lhe o pedaço de onde via o prédio e a araucária enveludada de roxos. Mas, essa, era só de recordar. Já nem a via desde que, há dois anos, fizeram subir o prédio de muitos andares, no terreno devasso, como o diziam, em que medravam figueiras e os rapazes jogavam futebol e se encarniçavam em lutas de soco por um cromo de igual intensidade como por uma namorada.
E, nessa tarde, ainda viu passar o rapaz.
Era a hora de ela ver o sol a pôr-se.
Via o pôr de sol nas vidraças. Vantagem que tivessem, era essa: deixavam-na que visse o sol esconder-se. Nem sempre. Que o sol se mudava de sítio. Parecido com ela: devagar. Escorregava-se. Ia dormir mais no dentro do mar. Deixava-lhe, ainda assim, uns restos.
Sempre na hora que era quando passava o rapaz. Sempre a essa hora era que as vidraças mostravam os vermelhos matizados de lilazes e amarelos, e verdes, e todas as cores. O sol que se ía nem se sabe aonde que nunca a gente sabe aonde o sol se esconde. Ou sabe.
Ela que não sabe, nem nessa tarde, e nem nunca, quem era o rapaz que lhe acenava um sorriso.
Na tarde em que ela disse fico, olha pelo vidro da janela fechada, quando ele assoma em frente. Nota-lhe, nunca vira, o cabelo branco e em falta. Visto de cima, nota-se melhor o redondo, no alto. Ela sorri de nunca o ter notado. Ele busca-a na janela. Ela sabe. Pesquisa-a com uns olhos de azuis e verdes em que se reflectem amarelos de fim de tarde.
O corpo dela obedece.
Arreda-lhe a cadeira de braços onde se senta demorada, nessa tarde.
Ergue-lhe a mão ossada de outros ossos que não os da anatomia.
Abre-lhe a vidraça.
Debruça-a.
Olá! Viva! Boa tarde!
Grita-lhe ela do seu corpo.
E o rapaz que passava por ali há tanto, ficou só sorriso por baixo da janela do terceiro andar. Um prédio antigo sem elevador.
As bocas sorriram-se um a outro, e ela jura que lhe poisou um beijo no pescoço e que ele cheirava a tomilho e outras ervas, que ela tinha afinado o olfacto com o passar do tempo.
Desde essa tarde, demorou-se o tempo preciso de o ver aparecer na enfiadura da janela. Não fechava as portadas antes que ele passasse. Nunca. Mesmo que nevasse.
A mãe constipa-se. Adoece.
Era o dizer distraído da filha quando, por um acaso, aparecia na hora de ela ainda se demorar.
Na hora de colocar uma flor no passeio defronte. O rapaz.
Na hora de deixar voando pedacinhos de palavras, palavras todas, em papel rasgado. Ela, do terceiro andar
Caligrafias de antes. Contos em recortes, esvoaçando, reflectidos nas vidraças amarelas de poente.

13 comentários:

Anónimo disse...

Gosto de ver como fazes nascer afectos dos olhares do amarelo das flores, entre outros sóis. Beijo!

Gi disse...

Não viveu pois não? Viu só a vida passar. Passou pela vida, através de uma vidraça. A repetição dos gestos.Dos outros. A vida dos outros.O viver só com o olhar. E o tempo a passar. A ficar amarelecido. Como as flores.

Foi como eu o senti. Agora.

Um beijo grande princesa do sul

Ana Paula Sena disse...

Muito bonito! Senti a delicadeza dela, o seu desejo de um sonho...
Que talento nesta escrita, hein? :)

P.S. - Só agora tomei nota do meu prémio! Mil obrigadas! Fiquei feliz com a tua lembrança. A solidariedade é das melhores formas de existir. Fico muito sensibilizada por me atribuires essa qualidade. Que certamente também possuis! :)
Beijinhos e resto de uma boa semana!

augustoM disse...

Venho agradecer a amablidade do prémio.
Um abraço. Augusto

wind disse...

Escritora mais um forte e belo conto.
Beijos

Pepe Luigi disse...

Magnífica esta tua excelente prosa.
Gostei imenso.
Parabéns.

Beijinhos

Mateso disse...

Passou-lhe a vida pela janela de vidraça... de longe, de mansinho.
A vida de cada em muitos de nós.
Excelente.
Bj.

Jorge Castro (OrCa) disse...

Assim como assim, um olhar no sentido inverso ao da rotação do mundo, amando também um pouco do avesso, que é um sítio bom de amar, por haver costuras onde a gente se agarre... ;-)

Olá. Saudades, com beijos.

Por aqui, tudo bem. Escreve-se escorreito e a preceito! Pena estares longe, que havia de raptar-te para as poesias...

Gi disse...

Deixo um beijinho e votos de resto de um bom domingo

Alberto Oliveira disse...

... a vida não pára a gente vê-a passar mas agarra-se a ela com todas as forças. Foi assim, é assim e há-de ser assim pelo correr dos tempos. E a janela (pelo menos nas terras de casas mais ou menos baixas) continua a ser o lugar de eleição para tal desiderato.

Não é do meu tempo que sou um jovem, mas conta-me a minha avó que os namoros da janela para a rua (ou vice-versa) eram o pão nosso de cada dia e acrescentava sempre um ponto ao conto, como daquela vez em que a jovem à janela do terceiro andar dizia ao namorado na rua "José, gosto muito de ti!" e o José respondeu "tá bem, vai lá fazer xi-xi que eu espero".


óptima semana com sorrisos qb.

éf disse...

"Na hora de colocar uma flor no passeio defronte. ... Na hora de deixar voando pedacinhos de palavras, palavras todas..."

Belo concentrado de poesia.
;)

Makejeite disse...

Hummmmm prosa deliciosa!

segurademim disse...

... nem sei que te diga!!

serve se te disser que gosto muito da cobra?


beijo. bom fim-de-semana [saudades]

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

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ai meu Abril, meu Abril...




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"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
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