terça-feira, 25 de setembro de 2007

vermelhos

Vermelho.
O chão da casa, a terra do quintal, a luz do fim de tarde. Vermelho o sangue que jorrava. A casa nua de ouvires: um silêncio metálico. Por todo o lado facas: espetadas nas paredes, caídas do céu; nos ruídos das portas e janelas. Sons de metal espetando: surdos, espaçados. E o rumor da árvore: a cerejeira. Plantara uma só árvore. Frutos vermelhos quando chegava o tempo. Agora esperava púbere que passasse o Inverno. E Inverno era hoje que se fizera em frio há já dois dias. Um frio cortante tal qual o silêncio e o metal das facas. O não ouvir vivalma. Nem um grilo, nem o uivar de um cão, nem o guizo das vacas do Timóteo. Que ela nem reparava nisso. Sabia só do seu respirar arfado, entrecortado, dos seus ais, baixinho, torcidos sobre o corpo que se distendia e encolhia ao ritmo da dor: uma faca fina entrando por debaixo, subindo, forçando, dançando em revolteios como uma mão socando, escramalhando. Descendo devagar a apertar-lhe o ventre numa cinta de aço. Um grito seu pairando no silêncio. E sangue. Um coalho. Vomitado de útero. E a porta zanzando de uma corrente que o ar dera em ventar: abanar de leve o ramo que fazia uma sombra rendada mesmo sobre a cama. Foi um instante de entre duas facas, que ela olhou e foi que viu o sangue. E pediu de si. Encheu aquele segundo. Enrolou em trouxa o lençol branco e empapou no sangue. Cada vez mais sangue, cada vez mais faca, cada vez mais ai, cada vez mais ela rolada sobre a cama larga, cada vez mais percebido que tão longe a casa e a cerejeira e o cão que olhava ela de olhos suaves, deitado como um cão a quem o dono não fala. Não lhe ensinou ela um vai, Piton, busca o telemóvel. Deixara-o no jeep, junto ao rio: quis subir correndo com o cão. Nada lhe previra. Ao cão apenas que buscasse o pau, a bola, que entrasse no rio a nadar com ela. Piton… um chamado sem voz, tão num tom baixo e logo se cansou. O cão cheirou-lhe a mão despercebido daquele odor diverso. Afastou-se. Ficou sentado bem por debaixo da janela onde o sol já não entrava: brilhavam estrelas no céu ainda não bem escuro.
Uma e outra vez, a faca mais amena socou-lhe o baixo-ventre.
Não sabe se durou muito tempo, se dormiu, ou se desmaiou.

Timóteo ouviu os latidos do cão pouco passava de começar a noite.

Ele trouxe-lhe orquídeas brancas num vaso. Sabia que não gostava de flores cortadas: mal empregues! Flores de damas. Oferece-mas em vasos.
Os olhos dele eram tão azuis! Sorria-lhe.
Que trouxera o jeep do rio. Que dera comida ao cão. Que belo amigo ali tens, Mimita. Era como lhe chamava, ternurento o seu Henrique.
E enquanto, enfiava-lhe no dedo da mão esquerda, ao lado do cateter que lhe escorria alimento, um anel pequeno, uma aliança enfeitada com uma pedrinha branca e, por cima, a boca dele quente, esboçando um beijo. Os olhos muito azuis, olhando-a, muito repletos de uma camada transparente que ela nunca vira, nem a ele e nem em qualquer homem dos muitos que lhe dormiram juntos.

Vermelhos eram também os seus cabelos.
E ela chorou: quisera tanto que fosse assim ruivinho e de olhos muito azuis!

5 comentários:

Anónimo disse...

Fantástico, para não variar! Gosto da mudança do vermelho das cerejas e do sangue para o branco cortado das orquídeas. Se disser mais, estrago! Beijo!

Alberto Oliveira disse...

... um texto muito quente relatando um momento frio de cortar à faca, quem sabe se anunciando outras temperaturas... que o Outono está aí à porta...

Gi disse...

J� fiz e refiz o coment�rio uma s�rie de vezes. N�o consigo. Lembran�as de mais neste mar vermelho sangue. Parece que se vive o momento outravez. Caramba mulher. � doloroso.

Um beijo. desculpa mas n�o sai mais nada

mfc disse...

Comovi-me!

wind disse...

Escritora, prosa muito forte e intensa que arrepia.
Beijos

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein