quinta-feira, 9 de agosto de 2007

verão azul


As peúgas enrodilhadas sobre os sapatos de pano em cor indefinida: a sola de corda libertando-lhe o andar num saltitar, fosse de ir sobre os redondos das rochas repletas de lapas miúdas e outros bichos que os havia nas covas que a maré vaza deixava repletas de água, fosse de passear miúdo na areia quando o sol se despedia em amarelos.
Sempre as peúgas brancas enroladas tocando a saia de barras coloridas. E o chapéu de abas, preso num laço de duas fitas amarelas, sob o queixo .
Ela se caminhava, de pés assim calçados, num para lá e para cá na praia.

Era verão e tudo acontecia igual ao que é costume em verões numa praia. Tudo igual, a começar pela casa que acordava ainda o sol tocava a linha de afago entre céu e mar.
Às vezes, ficava desenhado no redondo vermelho, um barco que regressava da faina ajoujado de peixe que disso não deixava em dúvida o emaranhado movediço das gaivotas.

A casa acordava em pequenos ruídos que não eram ainda das crianças sonhadas que um dia ali acordariam. Não eram pois ruídos de saltados da cama em ensonados olhos e nem de bons dias e nem de beijos repenicados.
Eram ruídos vagos, ruídos que se ouviam e deles se pensava: talvez.
Talvez um acordar zanzando no soalho do quarto ou fazendo ranger as tábuas da varanda.
Talvez uma chaleira soprando vapores de um esperado café.
Talvez alguma gente passando para um passeio madrugador.
Talvez a madeira da casa amanhecendo ao quente dos nascentes raios de luz.
Talvez apenas o respirar de quem se concentrasse nestas adivinhações.

Às vezes, havia pegadas gordas na areia: afastavam-se mesmo ao lado da casa; desfaziam-se na limpidez da espuma.
Eram pés sem dedos que nunca apreciei de atender se eram elas pegadas de animal ou de gente caminhando do morro ao mar ou, ao invés, deixando a praia.

Era raro, no verão, mas quando era, a água caía sempre pela madrugada de um céu cinzento que matizava o mar da cor do luto.
Então, escorriam desenhos na areia. Amarelos do morro pinchado de verdes rasteiros sobre a terra barrenta.
Águas que afugentavam banhistas e apagavam pegadas.
Ficava a praia lisa. Morena. Sarapintada de desenhos amarelos.
Às vezes, caíam apenas gotas esparsas, grossas. Então a areia ficava bexigosa. As pegadas disfarçadas pelo que pareciam picadas de abelhas.

Poderíamos ter gritado, mas quem nos ouviria?! Poderíamos ter dito: “Vai tu à aldeia”. Mas era madrugada, entre as três e as quatro.

Na areia o calor do sol desaparecera e os pés descalços afagavam-se de um fresco sobre o passadiço luminoso que o candeeiro da sala derramava a seguir à casa, terminando, abrupto, sem penumbra, num precipício entre luz e escuro.
Recurvado na praia, o concavo do barco: o mastro deslizado de sob o casco. Quebrado em dois pedaços informes.
A vela enrodilhada como meias sobre sapato de pano desbotado.

E fez-se a madrugada plena de um verão azul.
Dito assim parece que imagino, invento, atiro para o papel um dizer sem mais forma que a ligação das letras ou adjectivação das palavras: plena para a madrugada, azul para verão. E tudo conjugado num pretérito.
E no entanto plena é o termo indicado para essa madrugada espraiada e macia de morna. E que outra cor associar a um verão que corria mais devagar do que os tempos no relógio? que amanhecia em tons de violeta num horizonte entre céu e mar?

O sono dela eternizado na onda derradeira. Um sono de levante. As peúgas, enroladas nos sapatos, cobertas de algas, em cachos, como por enfeite.
A onda. A areia picada de chuva apagando pegadas.
O barco sem nem vela nem mastro.
E ela num sono eternizado.

Podia ter gritado. Mas calei-me.

O sueste amansara num sul dolente.
Esperámos que ela se despertasse. Rodou o vento a norte.
E foi pela tardinha. Quase noite.
Foi que o vento rodou.
Que ela dormia um dormir de morte.

Poderíamos. Podía ter gritado. Mas rezámos.

Talvez só eu o tenha feito, olhando-lhe os sapatos desbotados: pegadas de bicho pelas madrugadas. Lembrei-me.
Só depois chamei. Baixinho. Muito suave, não fosse ela acordar da minha verdade:

- Mãe, podías ter gritado...

para a GI com beijinhos

10 comentários:

Anónimo disse...

Belíssimo! Também eu ando com uns sonos de levante que não têm explicação. E quase me deu vontade de ir para a praia, mas este ano ando tão avesso à dita. Que queres, aborrece-me!...

Fay van Gelder disse...

Muito Lindo mesmo, Parabéns.

Adorei o teu Verão Azul, a Gi merece mesmo.

Bjo e Bom Fim de Semana

Fay van Gelder disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Mas que olhar maroto me fez o sê perfil, vezinha...

Gi disse...

Se eu n�o tivesse o olhar raso de l�grimas que at� parece me toldam os pensamentos talvez te conseguisse mostrar toda a emo�o e como�o que senti pela escrita e pela dedicat�ria. S� consigo dizer um muito obrigada do fundo do cora�o.
Um beijo grande, da "menina" da tran�a.

CNS disse...

Já cá vim algumas vezes. Lê-lo. E saí sempre com o esperguiçar azul e lânguido do teu verão. Sem palavras. Só a cheirar mar. E a sacudir a areia dos pés.

bjs

Anónimo disse...

Gosto das mudanças no layout. Mesmo!

jorge esteves disse...

Como encontrei pégadas na areia...
andei, vi a porta encostada e espreitei. Vou andando, mas volto...
Cumprimentos.

Anónimo disse...

gostei das mudanças e das constâncias. bj

wind disse...

Escritora está maravilhoso e dedicaste-o muito bem:)
Beijos

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein