Era como se não conhecesse os passos que um dia pisou em chão de terras vermelhas de muitos morreres, de caças e outras mortes que sendo iguais em ir-se deste ao outro mundo que nem ninguém conhece são mortes choradas em noites de lua ou de trovões e águas que empapam a terra seca. Meses e mais meses, até que o céu desabre em toneladas de líquido que fica grosso em caindo no chão, de uma a outra ponta de cada casa que são apenas quatro, alinhadas juntas, e a igreja que é mais uma ermida com um sino apenas e dentro só três bancos onde a mãe se sentava conversando com Deus nas tardes em que o pai e os homens iam à caça, os de cada uma das quatro casas e também o que morava na casa grande, a casa muito amarela com janelas verdes que abertas semelham braços acariciando as paredes por baixo do telhado em chapa de zinco.
Ficava a mãe rezando sentada na extremidade mais perto da porta da capela, mais perto do adro, local único de sombra como na tarde em que os homens chegaram e sentaram por ali as tropas. Homens que, desde então, pisaram aquela terra entre as casas e a capela.
Era como se ela não conhecesse.
Mas conhecera o cheiro da terra quente depois de cada chuva. Mas sentira o cheiro a sangue depois de cada vinda dos carros verdes suando a terra entre as quatro casas e as outras que os homens sentados no adro, mal chegados, ergueram uma a uma, distantes da capela, distantes das outras quatro, fazendo de conta que eram casas e eram apenas caixas com telhado. Casernas, chamavam eles, casernas.
A mãe nunca lhe ensinara a conversar com Deus? Ou ela não aprendeu? Ou desaprendera?
Ela conheceu o cheiro a sangue e o cheiro do queimado na mata, logo adiante de onde a terra deixava de ver-se e era só um cordão de árvores que engolia os carros dos que iam caçar e os carros verdes dos soldados. O cheiro a palha e a carne chamuscada.
Nas tardes desses cheiros, a mãe queimava cascas de laranja numa pá de folha-de-flandres e passeava os pés descalços pelo chão, da sala a cada quarto, defumando, dizia ela, defumando.
O cheiro do sangue e do capim queimado, e esse cheiro a carne que ninguém nunca dizia de onde vinha, ninguém o mencionava chegado, indesignado, a cada narina.
Nunca queimou casca de qualquer fruto ou rama de arbusto. Nunca defumou a casa, a sua casa.
Nunca se sentou num qualquer dos bancos da pequena capela. Nunca falou com Deus.
Nem na tarde em que o cheiro a entonteceu. Na tarde em que ele dormiu um sono igual ao que dormia quando o carro verde voltava abrindo uma clareira nas árvores da mata. Este sono ele trazia-o de lá e era tão sereno que nem ela via movimento na camisa empapada de suor traçado de vermelhos. Um sono que ela quis dormir com ele.
E a mãe encheu a casa do queimado da casca de um fruto que ela não sabe.
E a mãe sentou-se, olhando-o dormir, no primeiro banco da capela.
E os homens, e também o homem da casa com janelas verdes, sentaram-se com ela e parecia que todos sabiam conversar com Deus.
Todos, menos ela, que se senta no banco corrido entre as pontas da mesa, como se nunca tivesse pisado outro chão senão esta tijoleira creme com as uniões enegrecidas de muitos lavares, de muitas águas empapadas em sujos variados. O chão que lhe tem os dois pés assentes, muito unidos sob a mesa comprida. Um chão quadrado com uma janela debruçada sobre antenas de TV e telhados vermelhos e, muito ao longe, um azul, nesse dia, pardo, que parece o mar, mas ela sabe que é o rio onde pode ver um cargueiro, se levantar os olhos, sem esforço, erguendo-os apenas do livro que preguiça em ler, para o envidrado da janela. No restante quadrado do chão de tijoleira, há uma estante branca e um sofá de napa que foi verde e onde alguém, por descuido, enfiou um objecto pontudo rasgando-o de alto abaixo na zona de assentar o braço do lado esquerdo do peito. Talvez uma agulha de tricotar matando horas de espera, ou a ponteira de um guarda-chuva aguardando o tapar do sol de um dia de estio ou o proteger de uma peganhenta chuva de Abril. Talvez um canivete, contendo outros esventrares.
Ela desvia o olhar da página cento e dois do livro e olha a parede em frente. No quadro, pendurado por cima de um cadeirão de madeira escura, é mais um banco de ripas dos corredores dos hospitais antigos, um homem equilibra um prato na testa. Vertical, o prato muito branco mostra ser de loiça no que foi uma pincelada em zincado de tinta brilhante que ainda sobressai na cópia coberta por um vidro borrado com caca de mosca.
Fixa-lhe o equilíbrio, admira-lhe a arte. Imita-lhe o jeito dobrando para trás o pescoço e balançando a cabeça onde equilibra um prato imaginário.
Roda o olhar para o seu lado direito ao entreabrir da porta que dá para o corredor. O prato estilhaça-se no chão de tijoleira branca e ela olha-o como se não conhecesse outro chão diferente daquele cheirando a detergente e dobra a ponta da página do livro entre os dedos. Um triângulo vincado sobre o qual descai as páginas que já leu.
Fica o livro marcando o momento preciso em que se ergue do banco, encosta uma mão na mesa e desliza um chinelar sem ruído sobre o chão que nem é vermelho, nem de terra, nem separa casas e casernas, nem se deixa engolir numa fileira de árvores no começo da mata.
É como se ela não conhecesse, quando a mulher de bata azulada com um Eduarda bordado sobre a mama esquerda, lhe pega o braço dobrado sobre o livro, segura-o junto ao cotovelo, e diz com voz apropriada:
- Vai ver que o seu marido amanhã já vem.
Ela sorri e a porta da sala fecha-se.
Os seus passos na tijoleira branca atravessam a porta. Parece o chão de terra vermelha engolido pelo correr das árvores à entrada da mata.
Se ela (re)conhecesse.
Ficava a mãe rezando sentada na extremidade mais perto da porta da capela, mais perto do adro, local único de sombra como na tarde em que os homens chegaram e sentaram por ali as tropas. Homens que, desde então, pisaram aquela terra entre as casas e a capela.
Era como se ela não conhecesse.
Mas conhecera o cheiro da terra quente depois de cada chuva. Mas sentira o cheiro a sangue depois de cada vinda dos carros verdes suando a terra entre as quatro casas e as outras que os homens sentados no adro, mal chegados, ergueram uma a uma, distantes da capela, distantes das outras quatro, fazendo de conta que eram casas e eram apenas caixas com telhado. Casernas, chamavam eles, casernas.
A mãe nunca lhe ensinara a conversar com Deus? Ou ela não aprendeu? Ou desaprendera?
Ela conheceu o cheiro a sangue e o cheiro do queimado na mata, logo adiante de onde a terra deixava de ver-se e era só um cordão de árvores que engolia os carros dos que iam caçar e os carros verdes dos soldados. O cheiro a palha e a carne chamuscada.
Nas tardes desses cheiros, a mãe queimava cascas de laranja numa pá de folha-de-flandres e passeava os pés descalços pelo chão, da sala a cada quarto, defumando, dizia ela, defumando.
O cheiro do sangue e do capim queimado, e esse cheiro a carne que ninguém nunca dizia de onde vinha, ninguém o mencionava chegado, indesignado, a cada narina.
Nunca queimou casca de qualquer fruto ou rama de arbusto. Nunca defumou a casa, a sua casa.
Nunca se sentou num qualquer dos bancos da pequena capela. Nunca falou com Deus.
Nem na tarde em que o cheiro a entonteceu. Na tarde em que ele dormiu um sono igual ao que dormia quando o carro verde voltava abrindo uma clareira nas árvores da mata. Este sono ele trazia-o de lá e era tão sereno que nem ela via movimento na camisa empapada de suor traçado de vermelhos. Um sono que ela quis dormir com ele.
E a mãe encheu a casa do queimado da casca de um fruto que ela não sabe.
E a mãe sentou-se, olhando-o dormir, no primeiro banco da capela.
E os homens, e também o homem da casa com janelas verdes, sentaram-se com ela e parecia que todos sabiam conversar com Deus.
Todos, menos ela, que se senta no banco corrido entre as pontas da mesa, como se nunca tivesse pisado outro chão senão esta tijoleira creme com as uniões enegrecidas de muitos lavares, de muitas águas empapadas em sujos variados. O chão que lhe tem os dois pés assentes, muito unidos sob a mesa comprida. Um chão quadrado com uma janela debruçada sobre antenas de TV e telhados vermelhos e, muito ao longe, um azul, nesse dia, pardo, que parece o mar, mas ela sabe que é o rio onde pode ver um cargueiro, se levantar os olhos, sem esforço, erguendo-os apenas do livro que preguiça em ler, para o envidrado da janela. No restante quadrado do chão de tijoleira, há uma estante branca e um sofá de napa que foi verde e onde alguém, por descuido, enfiou um objecto pontudo rasgando-o de alto abaixo na zona de assentar o braço do lado esquerdo do peito. Talvez uma agulha de tricotar matando horas de espera, ou a ponteira de um guarda-chuva aguardando o tapar do sol de um dia de estio ou o proteger de uma peganhenta chuva de Abril. Talvez um canivete, contendo outros esventrares.
Ela desvia o olhar da página cento e dois do livro e olha a parede em frente. No quadro, pendurado por cima de um cadeirão de madeira escura, é mais um banco de ripas dos corredores dos hospitais antigos, um homem equilibra um prato na testa. Vertical, o prato muito branco mostra ser de loiça no que foi uma pincelada em zincado de tinta brilhante que ainda sobressai na cópia coberta por um vidro borrado com caca de mosca.
Fixa-lhe o equilíbrio, admira-lhe a arte. Imita-lhe o jeito dobrando para trás o pescoço e balançando a cabeça onde equilibra um prato imaginário.
Roda o olhar para o seu lado direito ao entreabrir da porta que dá para o corredor. O prato estilhaça-se no chão de tijoleira branca e ela olha-o como se não conhecesse outro chão diferente daquele cheirando a detergente e dobra a ponta da página do livro entre os dedos. Um triângulo vincado sobre o qual descai as páginas que já leu.
Fica o livro marcando o momento preciso em que se ergue do banco, encosta uma mão na mesa e desliza um chinelar sem ruído sobre o chão que nem é vermelho, nem de terra, nem separa casas e casernas, nem se deixa engolir numa fileira de árvores no começo da mata.
É como se ela não conhecesse, quando a mulher de bata azulada com um Eduarda bordado sobre a mama esquerda, lhe pega o braço dobrado sobre o livro, segura-o junto ao cotovelo, e diz com voz apropriada:
- Vai ver que o seu marido amanhã já vem.
Ela sorri e a porta da sala fecha-se.
Os seus passos na tijoleira branca atravessam a porta. Parece o chão de terra vermelha engolido pelo correr das árvores à entrada da mata.
Se ela (re)conhecesse.
10 comentários:
Obrigado, seilá, pela visita.
Um abraço do tamanho do Universo!
José Gomes
Belo texto.
Gostei de ler, como sempre.
Bom Domingo, beijinhos.
Xiiiiiiiiii Escritora este arrepia e angustia.
Tão visual, tão sentido, a guerra que deixou marcas, toda a descrição ao mais pequeno pormenor apertou o coração.
Fiquei "agarrada" do princípio ao fim, o qual me deixou triste.
Excelente texto Escritora!
Parabéns:)
Beijos
O teu texto corta. Lê-se sustendo a respiração. Isto se pudermos respirar o irrespirável...
Gostei muito. E eu acho que tu também sabes... :)
Terrível, comovente a envolvência da tua escrita. Como sempre. **
Já cá tinha estado mas mereces mais doq ue uma vista de olhos rápida sobre o que escreves e um comentário a marcar presença. Não o consigo fazer. O neto dorme e antes do passeio da tarde dediquei-me este momento . Contigo.
As cores e os cheiros são de África e quase que me atrevia a dizer que o sentimento também. O teu texto prendeu-me como aquela terra me prendeu quando a visitei com 9 anos. Ainda a sinto. Foi pouco depois disso que também comecei a desaprender a conversar com Deus. A minha mãe bem me ensinou mas sempre achei que mais tarde ou mais cedo, por falar sozinha iria trocar o banco corrido da igreja por um desses. Dos hospitais antigos.
Depois descobri que o deus que procuramos no céu afinal está dentro de nós, por isso aprecio tanto os silêncios e os meus momentos de introspecção. É quando me encontro e o encontro.
Dei um salto no tempo. Brusco, doloroso e sufocante. Quente como aquele chão vermelho do Uige já com muitos e muitos anos de memória. Do tamanho da incompreensão que (ainda) hoje me arranha...
Excelente texto!
Sei Lá: Parabéns! Um bonito e expressivo texto!
A terra vermelha... o cheiro do capim... as casernas... onde é que eu já vi isto?! :) Nas minhas memórias.
África, inesquecível... Também estiveste por lá? :)
Beijinhos!
P.S. - Olha, não me julgas capaz de chegar ao ponto de não sair para deixar o Wc a brilhar, pois não? :):):) Sou um bocadinho mais simpática do que isso! Tenho manias, mas não tantas.
Preciso de férias!! :)
Menina, muito bem escrito e com style.
Ainda por cima, com um fim inesperado: estava à espera de um marido a chegar meio morto do mato e ela, no hospital, à espera do veredito e, afinal, terminas com ela num hospício à espera de um marido que não vem - por ter mesmo morrido no mato? Por ter partido para outras caçadas? Who cares?
Gostei!
Parece-me que a inserção das horas nos comments não estará nada bem...
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