segunda-feira, 28 de maio de 2007

aula de solfejo

Ficava direita, as costas paralelas ao espaldar como se estivesse em intenção de se encostar na cadeira ou, de modo inverso, em quase se dela erguer. Como se aguardasse a intenção de cumprimentar alguém. Era como se sentava. As pernas mal unidas nos joelhos. Um V de coxas convergentes por debaixo da saia. Uma saia quase em arregaço. Um pedaço de pano cingindo-a de acima dos joelhos à cintura. Os pés unidos como se num laço, cruzados, o esquerdo assente ao de leve sobre o direito.
Sentar que ela fazia ao fim das tardes, esperando que terminasse a lição de solfejo, na salinha de quatro cadeiras e um banco além da mesinha de centro onde não havia flores, mas se notava o sarro castanho deixado pela água que alimentara, até ao podre, o último ramo que enfeitara a jarra verde alface num vidro barato.
Ficava tanto tempo ali sentada quanto o que demorava a aula. Uma hora e meia.
Ficava direita, com as mãos no colo, apoiada uma sobre a outra, descaído o dedo do meio na borda da saia, sobre a nesga das coxas cobertas de meias de vidro. Meias translúcidas com uma costura negra, contornando, perfeita, a barriga da perna.
Parava os olhos no quadro da parede em frente, por cima da cadeira forrada de veludo cor de uva madura em que nunca mais alguém se sentava. Ficava olhando. Uma reprodução não qualificada, dependurada em moldura de pinho enegrecida a água-rás.
Apreciava os tons do sol e o doirado que aspergia a ceara.
- Ela caminha em direcção ao fundo do quadro. Caminha para o mundo.
Pensara quando olhara a paisagem.
Pensara das primeiras vezes. E já havia meses.
Depois
Ficava olhando noventa minutos, até que nem era o quadro mais o que olhava. Olhava a que ia no caminho que não acabava: Os cabelos desnudos a voar na nuca, os pés descalços na terra solta, as costas viradas para o mundo, caminhando em direcção ao futuro.
-O que seria o futuro?
Pensava.
E iam-se-lhe deslizando os sentires para algures.
Um algures diferente em cada tarde. Noventa minutos.
A filha solfejando na sala ao lado.
- Dó ó ó ó Ré é é é Mi i i i …
Deixava de a ouvir. E ao bater do metrónomo.
Ficava nesse algures. Caminhava de cabelos aos ventos sentada muito direita na cadeira com a saia formando um desenhado V entre as pernas mal cruzadas.
Calhava estar naquele despojamento de presença, quando a porta se abria. A filha pegava-lhe a mão de sobre a saia. Pegava-lhe de muito leve.
Erguia-se.
Sabe que acordava. Ou não sabe nada.
A saia escorrega sobre a meia desfazendo o V das coxas mal tapadas. Deixa de existir o para além da paisagem. Os algures desfazem-se.
Caminha para a saída da sala, uma mão apertando a da filha e a outra preparada para acenar ao táxi.
Vistas detrás, as pernas são grossas, bem moldadas, e a saia, como o casaquinho cintado, torneiam um corpo de cintura grossa mas com um porte airoso nos sapatos de salto fino e alto dum verniz em preto como as meias e o fato. Cor de luto, diriam.
Cor de viúva.
Sentava-se na sala ao lado. Observava a paisagem do quadro. Noventa minutos em cada tarde das aulas de solfejo.
Viúva de poucos meses.
Morto que nem o sol mais vira o olhar verde que aguava em vendo a luz. Que a terra esventrada não luzia dessa luz que ofusca.
Ruíram os escorares em imprevistos.
Nada de exéquias nem enterros. Ninguém retirou os corpos.
Viúva há seis meses.
Observava a paisagem do quadro. Noventa minutos em cada tarde das aulas de solfejo.

10 comentários:

wind disse...

Escritora também fui algures com este belo conto, para variar:)
Beijos

Anónimo disse...

"Sabe que acordava. Ou não sabe nada." Mulher! Como me custa escolher palavras minhas para comentar a beleza das tuas!...

Isaac disse...

Narrativa que absorve e que estremece...

Perplexo.

CNS disse...

O teu conto tranportou-me para um outro cenário, uma outra época. Parabéns!

augustoM disse...

O solfejo da vida, que parece só ter duas notas, Dó e Só.
Um abraço. Augusto

Alexandre disse...

A vida é um solfejo em que passamos o tempo a tentar chegar ao instrumento mas poucas vezes passamos do deambular teórico das notas ritmadas sem som, sem acordes, apenas com as sílabas e os gestos das mãos em consonância com a imaginação.

Gostei do texto!!! Muito!

Beijinhos!!!

jorge esteves disse...

Dó!...
(sobrou da aula de solfejo...)
Uma bela história!
Abraços!

hfm disse...

Belo texto onde as metáforas nos permitem uma metalinguagem.

éf disse...

tá "uindo". melhor que fotos.

o cabeçalho minimalista fica melhor. o texto continua sem margem à esquerda, mas é só no mozilla. Só falta resolver o lettering dos comentários, que isto pa se ver a ssinatura do comentador, só de lupa.

Nia disse...

Lembro-me de quando tinha 6 , 7 anos.Sentada numa cadeira , muito direitinha.Esperando por ela.O relógio de cuco da sala, uma sala muito severa muito limpa, muito madeira, muito virgem, muito de solteira.E esperava por ela.Ela, a das mãos muito magras e compridas, com uns anéis enormes (ou era eu pequenina?) e esperava.O meu pai, ao lado, com o boné nas mãos...também esperando.E ela chegava...e aquelas mãos magras, enormes e aneizadas aproximavam-se de mim....O meu pai dizia:
-Beija a madrinha!
E eu beijava...beijava a mão da madrinha.Arrepiada.Estranhada.Com vontade de correr porta fora, para perto das folhas das árvores e do vento que corria fresquinho e bom.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

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meu honroso quarto lugar

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ai meu Abril, meu Abril...




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"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
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