quinta-feira, 10 de maio de 2007

diversão


Se falássemos as palavras todas, as que sabemos e as que ninguém escreveu ou disse ou se formaram ainda destas letras ou de outros abecedários.
Se falássemos ou escrevessemos com tantas dessas letras misturadas,
podiam os cachorros ser filhos de zebras
e andarem fadas pintando casas com velas de cera ardidas em pavios de cabelos.
Cabelos negros de princesas penteando-se à luz das velas.
Podiam andar pastores apascentando o gado em supermercados.
Podiam, nas horas de ponta, haver, no meio das filas de carros, anjos e demónios lutando pelo melhor modo de levar o condutor do lado.
Se falássemos com todas as palavras que há para falar e as demais que não sabemos, e ninguém sabe, podíamos trocar a vida por um sonho. Um ou mais. E andarmos nus pelas esquinas. E taparmos o frio com pétalas de flores.
Podíamos nem inventar tamanhos desconcertos.
Ficarmos apenas com as letras, todas as letras de abecedários, passeando de mãos dadas por estrelas e planetas.
Voar em cima de ús alados movidos a uma energia fornecida pelos ás a rodar, vertiginosos, nas dobras dos agás. Levar os bês por companhia nas noites longas atravessando o espaço para aportarmos muito, lá muito longe, nós e um abecedário desarrumado de todos os falares, de todos os escreveres, e sequer dos apenas pensados.
(Que também se pensa com letras, mesmo se não se sabe. )
Podíamos levar pela mão um ene de caligrafia.
E eu acho que gostaria de dormir enrolada num ó e tapar os pés com as dobras de um pequeno escrito com caneta de aparo.
Mas era o que eu dizia,
se falássemos as palavras todas,
se as misturássemos de qualquer jeito,
poderíamos fazer aparecer um palhaço de dentro do rebuçado de mel que a mãe nos deu para aquela dor no peito
e brincar de escondidas com ele em cima da tampa do fervedor do leite.
Enquanto assim fizéssemos, podiam dançar na cozinha as ervilhas em traje de fantasia.
Tudo possível a partir das letras.
Tudo mesmo.
(Depois de a gente tentar unir em palavras, sem olhar para ver, elas saltam sem pudor e erram pelo sítio da escrita ou do dizer. Parecem cavalinhos mal paridos, tontos, correndo no redil ou em desfilada pela pradaria. Zonzos na corrida. )
As palavras voam, desabridas,
e era uma vez
uma cigarra com as asas feitas de um tecido tão fino e transparente que parecia a quem a visse que ela voava sem as ter. As asas. Finas mesmo muito.
E era também desse modo o que lhe cobria a barriga. Deixava ver o que lhe estava dentro.
Não era uma cigarra, mas três e cantavam em cima de um palco.
Três cigarras quase transparentes tocando guitarra, flauta e clarinete. E cantam as três. Baladas.
A sala está cheia. Na mesa da frente senta-se um sapo vestindo calças de ganga e um blusão preto sobre a pele muito verde. Ao lado, com as pernas muito esticadas que não as consegue colocar por debaixo da mesa, uma girafa menina com a cabeça cheia de caracóis e madeixas cor-de-rosa, veste uma saia preta bordada por cima dumas meias roxas e cobrem-lhe as malhas da pele uma túnica amarela e um blusão de ganga safado de um azul roçado. Tem uns olhos tão verdes e grandes que, na mesa dela, o candeiro está desligado pois os seus olhos deitam luz que chega.
Chama-se Giriquella (com dois lês como ela gosta de emendar) e não se dá bem com o sapo a quem todos conhecem por Kari. Este sapo é sócio, no negócio do bar, do pato ganso vestido de vermelho que vemos lá ao fundo, encostado, mirando a sala de copo de genebra na mão. Bebe sempre genebra num copo de vidro azul.
Ouvem-se as vozes das cigarras cujo trio dá pelo nome de Nrafiju. Diz-se que em memória de um tio da mais novita. Uma história de morte por overdose com sumo de um fruto com aquele estranho nome. Nrafiju. Fruto selvagem da zona mais profunda do oceano formado, ainda nem há uma dúzia de anos, quando se afundou quase todo o centro da chamada Europa. Região inóspita, mas de extrema beleza que a pouco e pouco desaparecera.
O tio, ao que consta, fez parte de uma leva de pioneiros enviados por um governo de rapousas prateadas, ao tempo no poder, para repovoar de peixes os fundos desabitados da enorme cratera que se ia, a pouco e pouco, enchendo de água. Parece que o tal tio era um peixe de enormes guelras azuis e escamas de um prateado fulgurante. Ao tempo do envio, era uma cigarra e sofrera, como muitos outros, cigarras ou não, de modo compulsivo, não se sabe, um transplante, ou mais precisamente, fora-lhe enxertado sob a pele pedaços de peixe, como se faz às árvores.
As cigarras sempre viveram na parte ocidental da estratosfera a uns dois quilómetros, não mais, do local em que se formam as nuvens que mais chuva dão sobre a Terra, nos dias que os humanos chamam, sem muita imaginação, dias de chuva.
(Dos humanos já falamos. Mas adianto que são um tanto tansos e falhos desse mister que é o de pensar letras e novos oceanos ou cruzamento de espécies ou enxertos. Mais ainda, mostram-se inaptos no emprego de palavras com mistura ao acaso de letras ou, mesmo, de palavras que parecem, de início, não quererem dizer nada.
Mas depois falamos dos humanos.)

Estamos no bar gerido pelo sapo e pelo ganso Kkk que é assim um nome que a gente das letras com som, não lê, mas eles aqui no bar sabem dizer e, melhor do que todos, sabe-o o burro que fala o nome do ganso erguendo uma das patas traseiras e mostrando a dentadura.
Kkk.

Contar histórias destas
nem sequer é isto o que podemos fazer deixando saltar as letras, brincando com as ditas ou, melhor, deixando que elas se permitam brincar com a gente.
Podemos muito mais.
Se falássemos todas as palavras.

13 comentários:

wind disse...

Escritora, com as letras criaste palavras, brincaste, jogaste e criaste uma história fantástica!
A mim é que me deixas sem palavras!:)
E tu falas todas as palavras, como mais ninguém consegue:)
Beijos

Anónimo disse...

Olha lá. Gostei mesmo disto, tás a ouvir? Parabéns! Beijo!

éf disse...

isto escreveu o pinguim, ali ao lado?

n©n disse...

Olá,
obrigada pela participação no cadáver.
enviarei brevemente a versão integral por email.

Gi disse...

Énquanto te lia fui visualizando as imagens que criaste. Dignas de um quadro surrealista. Daqueles que eu tanto aprecio, sabes? :)
Bebi cada uma das tuas palavras, hoje estava a precisar deste mundo de magia que aqui deixaste.

Levo a letra B comigo, de:

- B-ola de sabão que me levou ao céu
- B-rilhante que acho o teu texto;
- B-eijo que te deixo

e agora
B-ou-me :O)

Anónimo disse...

e....rrrrhhhhhaaaaannnnhhhaaaaaa e....rrrrrhhhhaaaaaannnnhhhaaaaaa............................... istu éhhhhhhhhooouuuurrrrrrrrrrrrr um sindroma de fim de senana****

Alberto Oliveira disse...

... quando vesti a pele de porquinho da india, cheguei a andar nu pelas esquinas. Ou já não te lembras? que até editei fotos na net em pêlo? Não. Não era a "net em pêlo"; era o "porquinho em pêlo". É pá!, é preciso explicar tudo tim-tim-por-tim-tim...

Mas olha, deixaste aqui um belo post, essa é qué essa.

Anónimo disse...

«O Mais é NADA.»*U*m ABRAÇO! ccccc de/a.....palavras curtas

Anónimo disse...

Quando a cobra olhar de frente te conto a História da Cigarra.+...é nada?????????????*\/7.11.11«este é o codigo postal

VdeAlmeida disse...

Agora só falta corresponderes ao meu "meme" :-)

VdeAlmeida disse...

Amiga, eu vi a nomeação e na altura até te escrevi um comentário. Será que sumiu?
Agradeço mais uma vez :-)
Beijinho

Samartaime disse...

Desculpa???? Bem que gostei de te ver aparecer por aqui!...

Sim, as «burras» são africanas, da banda oriental - era assim que nós lhes chamávamos, pelo menos!...
Também andaste de «burra»?!

Anónimo disse...

Tem calma!A Primavera ainda não acabou,e as cobras ainda estão em fase de hibernação*AI vai um SOLzinho para tu(:

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein