sábado, 24 de fevereiro de 2007

Anúncio de Primavera

Eider Astrain

A princípio ainda pensou que lhe restavam duas ou três coisas que lhe apeteciam. Mas logo desfantasiou. Olhou o espelho de moldura dourada. Olhou-se no espelho de moldura dourada que existia ali desde que se habituara a nem perceber que eram sempre duas quando lá passava, uns dois passos antes de entreabrir a porta de entrada, ou, ao invés, um passo depois de deixar colocado no cabide o casaco, o lenço ou o guarda-chuva escorrendo. E isto desde que andava que nunca gatinhara, colocara-se desde sempre na vertical. Pois agora olhava-se no espelho num propósito de se dizer a alguém, nem que a si mesma em reflexo assim dissesse, que nada valia imaginar que lhe apetecia.
– De nada vale ensombrar de imaginação o real – pensava.
De dentro do espelho, ela. Do lado de lá, precisamente distante de si quatro quadrados de tijoleira encarnada, ela de cabelo levemente avermelhado caído sobre a testa rosada, afagando um dos olhos de esmeralda, olhos grandes de mais para o rosto que terminava logo abaixo, num redondo. Ela vestida de preto salvo o lenço muito verde que lhe enrolava o pescoço e caía, em moleza de lã fofa, até muito perto da anca.
– Negro – pensava, enquanto se deixava olhar.
– O preto derretido da minha pobre alma! – pensava.
Ficou ali parada muito direita, muito parada que só os olhos se moviam em acima e abaixo. Deixou-se olhar um infinito. As mãos dependuradas dos braços alongados no corpo magro. As mãos muito cheias de veias azuis salpicadas de pontinhos castanhos. Nem precisava ver, ela sabia-as. O seio espalmado na blusa de malha muito justa.
Sobrou-lhe tempo para deixar que se visse sem preto em cima, sem lenço verde enrolando o pescoço, sem saia negra resguardando-lhe o corpo. E deixou que os olhos esmeralda, do lado de lá, a quatro quadrados certos de tijoleira vermelha, a vissem nua. O seio ainda rijo, bem separada cada mama da outra por um fio de pele rosada de salpicos castanhos e abaixo um quase ventre que aquele relevo de maciez rosada mais era assemelhado a um pão amassado em fria madrugada esperando, lêvedo, o forno. Escurecia em baixo, de leve, era mais um salpico de pelo, uma mancha de rosado a ver-se. E iam seguindo, firmes, as coxas e as torneadas pernas firmadas nos pequenos pés todos eles rosados de unhas muito rentes sempre pintadas de um tom acobreado. Sempre as tinha pintadas, sempre. Esquecera-se de deixar que lhe visse a cintura e a anca, estreitas ambas, magras, quase se vendo, mal tapada de carnes, a geografia do osso da bacia.
Não lhe apetecia mesmo nada nesse dia. Ficou mais um instante frente ao espelho. Ruborizara a face, nem sabia porquê.
– Talvez – pensou – eu esteja precisada de mudar este preto, tirar esta roupa pesada, mudar o verde deste lenço de malha, vestir um vestido colorido, de ramagens, uma saia rodada, calçar umas sandálias rasas, pôr um lenço nos cabelos revoltos, pintar os lábios num tom aberto.
E, à distância de quatro lados da tijoleira do chão, olha-se retirando o lenço, a saia, desapertando um colchete,erguendo devagar um pé e outro pé no despir de uma peça de roupa.
– Talvez seja mesmo preciso despir-me deste preto...- voltou a pensar.
Ainda se deixou olhar, enquanto a medida de quatro tijoleiras se ensombrava de negro recoberto de um fio de verde.
– Talvez, depois, me apeteça, mesmo de verdade, uma coisa, duas, três ou mesmo quatro.

(Lá fora, e ela só o soube depois, tinham voltado, chilreantes, negras, em bandos e bandos, as andorinhas!)

9 comentários:

wind disse...

Escritora, belíssimo conto onde ns levas a "voar" até à personagem e a sentir como ela:)
beijos

Gi disse...

Seilá, lindíssimo conto como
sempre. De vez em quando também sinto a falta de tirar o luto mas, da alma.
A chegada das andorinhas anunciou uma primavera por aqui, eu faço-lhes companhia e anuncio o nascimento do meu novo blogue já que aos outros não consigo aceder.
Espero que lhe possa porpocionar bons momentos vou fazer com que seja um pouco a continuidade do outro (disponível para visualização)

Mais uma vez se chama Pequenos Nadas e a porta está aberta sempre que quiser. Um beijinho

jorge esteves disse...

'Farrapos de Primavera' ou 'Cantata para um espelho silencioso'.
Não sei se algum destes rótulos consegue embrulhar tão excelente trabalho...
Abraços!

Anónimo disse...

Um conto cheio de encanto. Até o negro dos caracteres que embelezam as palavras se iluminam de sedução... E elas voam, voam, livremente como se fossem transportadas nas asas de uma andorinha!

Um beijo meu

sotavento disse...

Tu sabes que estou admirada?!... As andorinhas ainda não chegaram!... :|

vida de vidro disse...

Um desejo de renascer, uma promessa de primavera! Tem "corpo", o teu conto. **

perplexo disse...

Olha aqui:

http://www.cgtp.pt/images/stories/imagens/2007/01/regulamento.pdf

mcbastos disse...

Viajei um pouco nas suas palavras. São palavras que convidam a embarcar e depois nos transportam, sempre com ritmo quase poético e com uma clareza que nunca se fica pela mera descrição.
Gostei.

VdeAlmeida disse...

Nem imaginas a saudade com que eu já ando da Primavera :-). Fazem-me falta os bandos de pardais à solta...

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein