Pararemos no cimo daquela colina onde a cascata brota da montanha como um véu que tivesse ficado, displicente, descuidado, caído de gaveta, a noiva correndo a desnudar-se.
Para lá da cascata, se a contornarmos pelo topo, veremos o vale pontilhado de vermelhos e muitas manchas de verdes, e poderemos sentir a água aspergir-nos o rosto. Nesse local, poderemos ouvir o piar da águia e chegará a nós o arrendado da névoa mal descobrindo o fundo da apertada garganta. Nesse local, seja qual seja a posição do Sol entre nascente e poente, ou onde se encontre a Terra em relação ao Sol, estaremos sempre num lusco-fusco de um cinzento aguado em violeta. Não existem árvores, mas uma sombra que parece do céu, cai-nos sobre os ombros, doce e fresca, enquanto os pés se amaciam na erva de um verde acobreado e caminhamos entre mato rasteiro e arbustos gordos de cachos vermelhos e amarelos.
Começaremos a descer olhando o vale. Sentiremos, por uma daquelas subtilezas que a Natureza nos dá, que o vale, devagarinho, se aproxima de nós. O vale subindo lento, como lento deve ser nosso descer a encosta que se reveste de pinheiros ponteados de vetustos carvalhos. Pouco a pouco, o vale desnuda-se, descodifica cada ponto de vermelho e cada mancha de verde. Nós, um a um, iremos deixar de ver a subida do vale e estaremos balbuciando veres de descoberta.
Uma leira de batatas, cebolas secando ao sol, campos de milho, telhados vermelhos onde esvoaçam pombos.
Gente que come em redor de uma mesa grande.
Um ribeiro transparente que desliza, amaciado por verdejantes margens, num leito arredondado por seixos.
Os cheiros com sabor na boca e a emoção que tem um odor esquecido.
Andorinhas entrando e saindo dos ninhos.
Algum de nós acariciando um bezerro como se fora cachorro.
Ficaremos no vale.
Cada um de nós sabe que um dia irá subir a encosta.
Que subirá até onde a cascata parece um véu de noiva a desnudar-se.
Que subirá para vislumbrar ao longe, demasiado perto, o emaranhado de betão por onde espreita um mar de praias enegrecidas, riscado no acinzentado do céu, lá muito do lado de lá da colina.
Que voltará a subir, apenas para recordar a garganta apertada lá muito no fundo.
Cada um de nós ficará.
V.VanGogh
6 comentários:
Escritora está magnífico!
Estou sem palavras!
Parabéns:)
beijos
E hohe resolvi fazer uma visita a partir dos links do blog chuviscos.
Que saudades eu tinha dos teus contos...
Continuas a escrever cada vez melhor!
Um abraço e bom Agosto.
Lindo amiga. Posso ficar também nesse vale?
beijinhos
Belíssimo naco de prosa, minha amiga. Paleta de pintor, na verdade, de onde ressalta um odor a cinza não querido.
Mas subiremos essa encosta até onde o coração nos leve, buscando a remissão do pecado do cinzento.
Beijos.
Esse vale é real, é o Shangrilá, que existe em todos nós, onde vive a nossa melancolia.
Um abraço. Augusto
Já não acredito que algum dia consiga subir o vale. Qualquer vale. O que me vale é que não estou só na minha crença...
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