sábado, 17 de junho de 2006

sei...

Os meus olhos são claros e as mãos pequenas cobertas de veias. Sentada na varanda, olho o mar espraiar-se na praia lisa da maré vasa. A água escorre por debaixo das patas de um bando de gaivotas. Nas costas, afaga-me o castanho de um xaile que fiz há muitos anos e as pernas estão vestidas de um azul esfregado de ganga. A blusa que cai nas ancas, enrola-se no pescoço, como as meias de lã nos tornozelos. Uns óculos muito escuros cobrem-me as olheiras castanhas, manchadas de claros-escuros, em redor de cada um dos olhos. Pontas de cabelo soltam-se do lenço e tilintam-me o rosto ao sopro do sueste
(Descrevo-me porque não me sei contar.)
No areal, vejo arrastar-se um pano. Tão branco, parece meio lençol. O mais certo é ser uma toalha, um pano turco abandonado. De onde estou, o pano vem redondo como vela sem barco. Um breve bufar de vento e o pano fica muito direito, muito rosca deslizando em direcção ao mar. Daqui de onde o olho, daqui de como o olho, assemelha um fantasma correndo a afogar-se. Colo os olhos nele que se afunda nas ondas já só brancas e negras na luz do fim de tarde. Ainda descortino uma ponta, mas não sei se confundo com o rebentar da água muito para lá da praia. O pano afogou-se.
(Oiço bater, contei-as, oito horas no relógio da torre.)
O horizonte enegrece e enegrece a praia. O mais é luz lá muito, muito ao longe, onde se encontra a torre que bateu as oito horas. Onde me sou é tudo preto salpicado de branco. Levanto-me devagar enquanto tiro os óculos e os abandono sei lá eu aonde. Desço dois degraus que eu os sei de cor. Sinto a areia fria entrar em cada meia. Dou tantos passos curtos como os que me separam da água que se espraia no baixo da maré. Prende-se cada meia na areia molhada. Sei que o azul da ganga escurece no esfriar das pernas. Sei que as minhas mãos mostram mais pequenas veias. Sei que o pano afogado cavalga uma onda que me rebenta ao lado. Sei que as meias se soltam e sei que não dou passos.
(Sei, mas o que sei não penso.)


foografia daqui

10 comentários:

segurademim disse...

... por fim dobrou-se, o frio impedia-a de pensar, só sentir, aquela leveza intacta na noite escura sem luar intenso...
deixou-se ir... a corrente forte fazia o que tinha que ser feito

segurademim disse...

sei ...

ND disse...

nuns mais do que noutros (textos)ao ler ocorre-me muito o Mia Couto, embora não conheça bem este autor.
«assemelha um fantasma correndo a afogar-se» é um exemplo do que afirmo.
Há muita melancolia nos teus escritos e neste, em particular, e embora nos situe (chame) à realidade presente nos apartes entre parênteses (gostei disso, marca-lhe rítmo), não deixa de ser menos triste, parece mesmo que reforça esse estado de desolação.

wind disse...

Escritora este conto está estraordinário. Até me arrepiei. Já nem sei o que escrever para te comentar.
Escreves cada vez melhor.
beijos

peciscas disse...

Já há muito tempo que náo passava por aqui, pois o tempo náo tem abundado.
Mas vê-se que continuas em forma.

lique disse...

Estive uns dias fora e agora estou a recuperar o tempo sem net. Cheguei aqui e, como sempre, levei aquele habitual abanão que me dá um aperto no peito e um nó na garganta. Estou piegas, talvez. Ou tu tens o dom de me comover, para lá do que eu espero...
Beijão

augustoM disse...

Num pôr de Sol à beira mar, não nada para contar, limitamo-nos a tentar descrever o que nos vai na alma.
Um abraço. Augusto

Alberto Oliveira disse...

"(Sei, mas o que sei não penso)."

E logo nesta praia não vigiada... E eu que tão mal nado. Mas há situações em que o melhor é não pensar; atiramo-nos de cabeça.

O Micróbio II disse...

Por aqui já cheira a praia... :-)

Nilson Barcelli disse...

Gostei imenso deste teu conto.
Conseguiste criar uma atmosfera que me transportou para o mar algarvio e me fez lembrar alguns fins de tarde já longínquos na minha memória.
A fotografia, minimalista, pareceu-me adequada e portanto bem escolhida.
Beijinhos.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

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ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein