- Bons dias Sª Dona Assunção! Uns espinafrezinhos fresquinhos?!
Avelino, ataviado no guarda-pó cor de terra que lhe expunha o excesso de carnes, esfregava as mãos uma na outra, as costas num requebro e os pés fazendo passinhos para a esquerda e a direita em frente da velha senhora. Senhora Dona era como Avelino sempre chamava às, como ele dizia, “verdadeiras senhoras”. Dona Assunção parecia não o ver e ia seguindo a sua entrada na loja o que fazia Avelino dançar – esquerda, direita, atrás; esquerda, direita, atrás; até chegar ao balcão, dois metros desde a entrada atulhados de caixas de fruta e legumes variados. Então, Avelino postava-se muito direito do lado de lá do balcão e ouvia atento e solícito.
Nem sempre ela vinha. Era até raro. Uma vez por mês, talvez. Normalmente vinha a Gertrudes, moça das Beiras que desde há muito trabalhava na casa. Trazia sempre um papelinho com a letra muito cheia de arabescos da dona Assunção. Quando Dona Assunção saía daquela casa, a maior da rua, aliás também da outra pois que ia de um lado ao outro; quando era ela que vinha à loja do Senhor Avelino, era assim que, como há 50 anos, Avelino a recebia. O mesmo quase cerimonial, variando apenas na sugestão de compra.
Hoje Dona Assunção encostou um pouco mais o corpo ao balcão, deixou cair a ossatura, que poucas carnes sempre haviam recoberto, numa inclinação de confidência ou de pedido. Avelino estranhou e sentiu-se como se uma lava lhe percorresse, em todos os sentidos, o corpo. Dobrou-se, instintivo, por de cima das chouriças, salpicão e demais charcuteria. A cabeça dependurada do corpo rechonchudo, muito espetada para ouvir. Avelino, antes, durante, enquanto ouvia, ele não sabe, apercebeu-se de coisas…tantas coisas!
A boca da Dona Assunção cheirava a leite e a açúcar queimado e Avelino pensa que corou. A boca da Dona Assunção era rosada por baixo do batom vermelho esborratado e Avelino sentiu que uma baba lhe escorreu aos cantos da boca. O cabelo dela era muito branco e via-se, assim de perto, o rosado da cabeça e Avelino sentiu que estava olhando Dona Assunção em camisa e acha que nem ouviu quando ela lhe sussurrou:
- Senhor Avelino pode passar-me a levar a casa estas compras? - e mostrava um rol escrito naquela letra esmerada. E explicava:
-A Gertrudes adoeceu e foi para a terra.
Avelino tremia-lhe a mão com que aceitou o rol.
Dona Assunção, que sempre o soubera um bom homem, não supusera que tal amizade o ligasse à Gertrudes e hesitou em dizer-lhe:
- Tenha paciência senhor Avelino.
E Avelino respondeu-lhe tentando que a voz lhe saísse sem tremuras:
- Farei com o maior gosto, Dona Assunção.
A entoação soou-lhe a grito de entusiasmo. Mas já, endireitando-se, Dona Assunção pedia:
- Pese-me estes três pêssegos, por favor, Senhor Avelino.
Gustave Klimt
14 comentários:
Avelino sobe as escadas
Com termuras nas canelas
As compras vão ensacadas
Os olhos duas janelas
Os olhos duas janelas
Com brilho de fim de tarde
Tropeça em duas velas
Tombam sacos com alarde
Tombam sacos com alarde
Assunção descerra a porta
No chão Avelino arde
Cata pêssegos da horta
Cata pêssegos da horta
Quase a morrer de vergonha
Sua vida é mesmo torta
Escorrega quando sonha
Extraordinário conto. Prende do princípio ao fim. Bom post:) beijos
Extraordinários os pormenores... O criar do clima. Tudo. Beijão cheio de calor.. ufff
Delicioso, este teu post! A descrição perfeita que nos faz ver cores e cheirar aromas. Só tu.
Beijos
Um beijinho pelas tuas palvras e para te dizer que vou fazer umas férias disto. Preciso de espairecer.
Mais um abraço.
amiga, com k bela narrativa nos brindaste. Bj grande e boa semana
bom. muito bom mesmo. as usual. abraço.
Ah minha grande seilá, que nos ataviaste este derriço com um esmero de papel pardo embrulhado em fita de seda, que nem te conto!
Até a mim me ficaram as pernas a tremer de antecipação!...
O melhor de um conto: o que nos leva para lá dele. E tu, aqui, assim, prontos, como se nada fosse... e zás!
Um beijo, amiga, com entusiasmo por este desvelo.
Já agora, uma chapelada a Sotavento, pelas excelentes e apropriadas quadras.
Muito bonita, a paixão envergonhada.
Mas fiquei cá a pensar no que seria se ela lhe pedisse para ele lhe pesar uns marmelos :-)
Como um ritual pode ser tão vital para um dos intervenientes e tão "funcional" para o outro...
"Vi" o Sr. Avelino conversando, recuado e inquieto com a Srª D. Assunção. Escutei as suas respirações. E espreitei-lhes a alma...Mérito da autora, claro!
Obrigada, Orca, 'tava a ver que ninguém reparava!... :)
Seila,
Gostava que passasses lá no "ABOUT LAST NIGHT" para participares na festa de aniversário e para soprares uma velinha.
Bjs.
Fico sem palavras, como sempre...VOU DE FÉRIAS! Bj e até ao mês que vem! Fernanda
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