segunda-feira, 17 de abril de 2006

viajante

Rua acima, beco abaixo, retorno ao largo central. Mais uma ida à ruela desarrumada. Mais um olhar naquela indescoberta pedra, naquele arabesco. Um olhar nas traseiras de uma rosácea, num capitel entrevisto da porta de uma igreja. Os olhos passeavam por tudo. Esvoaçavam, largados de nós, cansados transeuntes do eterno. Os olhos, avezitas que subiam, desciam, roçavam, debicando o reter. Embebedados, olhos nossos.
A nossa alma só mais tarde partilharia, sossegadamente, o nosso correr pela cidade.
Uma cidade daquelas enterradas num vale com poentes desfeitos no cabeço de um monte e manhãs preguiçosas deslizando em nuvens de orvalho.
Era uma cidade sem rio. Um ribeiro ao longe que nem lhe chegava a ser mesmo da cidade mas dos arrabaldes.
Uma cidade também sem castelo que disso não se pensa ser de aglomerado assim tão lá em baixo e ainda mais sem rio de onde se pensasse, em tempos de outros tempos, subissem ataques.
Era uma cidade espraiada sobre si, abraçada no frescor do vale. Da torre da maior Igreja, pudemos perceber a dimensão desse abraço de que os modernos arrabaldes detinham o desfazer-se, ele, em braços saciados deslizando para os montes.

Era o começo dessa noite, nessa cidade deslizada num vale. Estávamos parados numa esquina de onde se via o monte mais alto na perspectiva de estar encimando o pico da cruz na torre da Igreja.
Eu fumava um cigarro, os pés doridos de tanto olhar.
Empertigados viajantes nos queríamos.
Na mesa em frente sentava-se um perfil de menina. Falava. O olho que lhe via, chorava. Era uma dor que não casava com este meu andar.
Fixei se não seria pantomima, este meu comprar o descanso na terra onde, sem mais que eu pudesse saber, uma menina me chorava, na mesa em frente, assim, de lado.
Mais tarde, nossa alma nos diria, no remanso do quarto de hotel.
Mais não sois que turistas com olhos de olhar. Viajantes, não. Mesmo numa cidade sem rio e sem castelo de ameias para espreitar, vós sois apenas compradores de ócios. Viajantes, não. Só vossos olhos e vossa alma viajam. Só eles são viajantes.
Desde essa tarde, meto umas roupas num saco, um livro, as coisas de higiene. Pouco, muito pouco. E vou. Durmo onde calha sem rumo e sem horário.
Assim, fico mais ou menos tempo na cidade onde possa haver uma menina de perfil na mesa em frente. Assim, posso eu deixar andar a alma e os meus olhos pela cidade sem que tenha eu que me ficar doendo os pés de ter olhado.
Desde essa tarde, tenho mais a ilusão de que viajo.

Chagall, promenade

10 comentários:

5 Pontas disse...

È bom começar assim a semana, com um belo texto.
Beijos e fraternos abraços 5x

wind disse...

Muito bom!:) Beijos

augustoM disse...

Muitas vezes a ância do olhar não deixa ver nada.
Um abraço.Augusto

lique disse...

Viajar é algo diferente de "ver coisas". Viajar é tentar sentir o pulso de outras gentes, talvez entender as lágrimas no perfil da menina... :)
Gostei muito, claro. Beijão

Armando disse...

Ops.. isto de teres uns tantos blogs é complicado!! Ainda num outro teu blog, há instantes, te dizia que é fascinante como escreves!! Este texto é bem mais um exemplo disso!! Aliás e sem querer estar aqui a elogiar-te, é um prazer de facto ler-te!! Contudo e acerca deste post...a descrição que fazes da cidade, não será antes uma aldeia?? Olha que....tem todos os igredientes para ser uma aldeiazita de interior!!! Gostei...!!

Nilson Barcelli disse...

Será mais uma espécie de crónica do que um conto.
Gostei imenso, porque está bem escrito, como é usual em ti.
A espaços fizeste-me lembrar as crónicas do Lobo Antunes, que ele faz na Visão.
Já pensaste em deixar a Química...?
Beijos querida amiga.

Anónimo disse...

Isto ficou lindinho, sim, mas, não sei porquê, associo aquela vegetação a uma qualquer outra imagem!... ;)
By the way, qu'é feito das minhas dunas?!...

Amaral disse...

Mais uma viagem, mais um deslumbrante momento de leitura. Não sei o que dizer-te, apenas que, quando te leio, sinto-me perante alguém que sempre escreveu na sua vida. Acho que já te disse algo parecido um dia longínquo…

O Micróbio II disse...

Essas são as viagens que compensam... :-)

Rui disse...

Obrigado pela viagem.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein