sábado, 18 de fevereiro de 2006

Mistura/s

Sentada na poltrona, Maria Teresa bordava. Era um bordado antigo o que fora buscar. Um daqueles que começara em dia de muita vontade, como hoje, de assestar agulha em pano e ver a cor e a figura se irem desenvolvendo. Um desenvolver calmo, lento, como calma e lenta se sentia. As flores assomavam do jardim. Vi-as reflectidas no espelho que ocupava a parede em frente da poltrona. Num virar de olhos, ela abrangia dois jardins – o real e o reflectido. No momento em que vo-la descrevo, Maria Teresa parara de bordar. Olhava o tecto, ou parecia fazê-lo, a nuca de leve inclinada sobre o veludo da poltrona. Pestanejou. Uma aragem moveu o cortinado da janela e no espelho o jardim reflectido mostrou-lhe duas rosas vermelhas. Reparou numa mosca parada no rebordo do tecto. Uma mosca grande e negra. Nesse instante, a porta de vidros que dava para o jardim, abriu-se.
-Sob a acção de outro golpe de vento?! - pensou Maria Teresa.
Colocou o bordado na mesa ao lado da poltrona e levantou-se para fechar a porta. Tilintaram vidros quando a rodou. Era o tilintar de dois vidros rachados. Eram dois vidros vermelhos, verificou Maria Teresa. E voltou a sentar-se na poltrona a dois passos da porta. Começou a bordar de agulha na mão, a linha amarela fazendo um redondo no ar, frente à sua cara. Olhou o tecto.
-Onde está a mosca? – pensou.
Lá estava ela. Quieta. Negra.
- Deve estar morta – pensou.
Traçou um cheio de amarelo na parte interior da flor.
- Pedirei que tirem o insecto dali. Ou irei eu mesma buscar o vasculho e tirar. - pensou.
- E se a mosca, ou o que dela resta, me cair em cima? - pensou. E Maria Teresa sentiu um leve arrepio.
Virou a cabeça e olhou na direcção onde vira a mosca. No sítio da mosca, estava uma mancha vermelha. Desviou o olhar sentindo algo de estranho. Tentou concentrar-se no bordado. Pegou a agulha em posição de furar o pano. Os seus olhos pousaram numa mosca grande, negra, poisada sobre o cheio acabado de fazer. Vivo, o insecto agitava-se em passinhos saltitantes deixando sobre o bordado marcas vermelhas.
Maria Teresa ainda hoje se lembra como gritou e jogou pela sala fora o bordado reiniciado.
E eu que conto, se percebo que Maria Teresa teve medo ou nojo, ou ambos os sentires, não entendo porque apareceu, no rebordo do tecto, o vermelho. Sobretudo, não percebo porque trazia a mosca as patas sujas dessa cor.
Será que as paredes da sala eram pintadas de vermelho?
Como eu não o disse neste texto, nenhum de nós poderá fazer mais que reinventar os acontecimentos que acabei de descrever.
O certo, vo-lo afianço, é que Maria Teresa não acabou o bordado e nunca mais olhou para o local do rebordo do tecto onde estivera a mosca.
Mas também vos adianto que conheci um trolha que me foi fazer um serviço de pintura de uma arrecadação que, dizia ele, já fora de várias cores. E, entre uma cerveja e um cigarrito para descansar, foi-me contando : “Pois, estive há tempos a trabalhar na casa de uma senhora que afiançava que por baixo do branco da saleta de entrada, era tinta vermelha e me pedia que raspasse tudo e pintasse de amarelo. Ora eu basta olhar para a cor para saber se tem tinta de outra cor por debaixo. Vi logo que não havia tinta vermelha nenhuma. Mas ela insistia...olhe, cobrei duas raspagens” e ria.
Não, não lhe perguntei o nome da senhora. Por isso, continuo a pressentir, apenas a pressentir, que Maria Teresa deve ter apanhado um valente susto. Um susto que durou. Mas sem saber de onde viria aquele vermelho nas patas da mosca e no rebordo do tecto.

August Macke Senhora cosendo na poltrona 1909

9 comentários:

Alberto Oliveira disse...

Será que Maria Teresa viu de facto uma mosca negra e feia escarrapachada no tecto? E qual o significado do vermelho, neste conto a escorrer suspense?
Ou Maria Teresa apenas ( e porque poderes nunca o saberei... )teve uma (pre)visão negra -representada pela mosca, do que aconteceu hoje em Guimarães (o vermelho)?!
Mistérios insondaveis...

wind disse...

Fabuloso! A descrição, o sentir, o mistério, a interrogação, o humor negro, tudo nesta prosa:) Beijos

Anónimo disse...

Tens uma escrita fabulosa.

Nia disse...

Cores?São muito traquinas as cores...Ainda agora mesmo.Entrei aqui e estava tudo branquela e, de repente,zás...a folha mudou de cor...e apareceu o teu arco-íris que agora também é meu.
O vermelho do tecto e da mosca e...ora...NÃO É SANGUE!Afianço-to!A mosquita só tinha andado a fazer uma farra alambarando-se no doce de tomate que a Dona Henriqueta, a tia bem amada da Maria Teresa tinha feito nesse mesmo dia.
(E não é nada do vermelho-tragédia- de -Guimarães que esse senhor aí ,o LEGÍVEL, insinuou DESCARADAMENTE! Humpft!!!)

Anónimo disse...

apareci aqui por acaso e gostei da escrita. até qq dia.

Amaral disse...

O que tenho a dizer é curto.Na minha opinião. trata-se de um conto muito bem escrito, com o tamanho ideal e de fácil leitura. A personagem está muito bem definida e a ideia tem a sua coerência própria. Gostei da mistura(s)… sem favor!...

BlueShell disse...

maria Teresa nunca acabou o bordado... a mosca estva quieta...tinha sangue nas patas...
e o homem ria pois entendia que por baixo das paredes brancas nunca houvera outra tinta...muito menos vermelha!

Mais importante que tudo o resto é que...todos sentimos, um dia, que há algo mais para lá do que é visível a olho nú!

lique disse...

História de suspense tão bem contada que eu até já comecei a olhar para o tecto da sala.... :)
Há tanta coisa que intuimos sem ver, na realidade!
Beijão, mulher. Não arranjas maneira de vir cá a 4 de Março ao Encontro que o Jorge está a organizar? Gostava de te ver. :)

Alberto Oliveira disse...

Olha a Nia deu à costa!! E logo para me dar um safanão, danada da mulher!!

E tu? Quando escreves mais um conto? ahn?!

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein